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 | Foto: Antonio Costa / Ilustração: Felipe Lima
| Foto: Foto: Antonio Costa / Ilustração: Felipe Lima

Depois de um ano e três meses de namoro, finalmente passei da porta para dentro, yabadabadoo. Explico. Numa andança de janeiro de 2009, fui assaltado pela imagem de uma casinha, plantada na Rua Alexandre Gutierrez, 766. Gamei, bati palmas, ouvi "não" e dei vexame.

Para quem não ligou o nome à pessoa, a casinha fica num daqueles pontos em que a Água Verde, tolinha, pensa que é Batel. En­­de­­reço dos deuses: está a 20 passos da Praça do Japão e é vizinha de porta daqueles espetaculares condomínios verticais que custam R$ 1 milhão a unidade.

Mas a meia-água de madeira não se compara. Tem estilo. Está a 1,5 metro abaixo do nível da rua, uma vista privilegiada. O amarelo de suas paredes – em legítimo pinheiro-do-paraná – dispensa artifícios da estética moderna. Ela é de verdade, entende?

Nosso flerte começou na cerca. Dali se pode ver a escada ladeada de plantas, as cortinas tremulando, a plaqueta "bem-vindos ao nosso sítio". Há beijinhos a esmo, orquídeas no xaxim e uma árvore apinhada de coloridíssimas aves artesanais. Em meio a araras, cisnes e tucanos, dá para ver o Louro José.

Bem que me soltaram os ca­­chorros. A exemplo da Teresinha da canção, não foi da primeira nem da segunda vez que tive permissão de descer os degraus que separam a casa do ano em que estamos. Na terceira, oba. Soube nesse dia que meu objeto de de­­sejo foi erguido por volta de 1910 e que pertencia a uma mulher com nome de poesia – Ana da Luz, quiçá descendente de escravos, uma negra nas rebarbas da Colônia Dantas.

De Ana a propriedade passou para a filha Araci da Luz, que ali viveu com José da Rocha – operário do Moi­­nho Unidos – e deu à luz Iolando, aquele que me abriu o portão. O sujeito é da gema. Estudou no Lysímaco, lembra do Rio Água Verde e dos tempos em que a Praça do Japão estava mais bombardeada que Hiroshima de­­pois da passagem do Enola Gay. Ele é puro passado. E o passado para Iolando custou a passar.

Era homem feito quando virou funcionário do Tribunal de Justiça do Paraná. Lá conheceu Margarida, separada, mãe de dois filhos. Namoricaram durante 36 anos – ele no setor de recepção, ela nos serviços gerais, até se aposentarem. E nada de casar. Io­­lando cuidava da mãe. A pretendente bem que aparecia nas tardes de domingo, mas não po­­dia arrancar uma tiririca sem licença da sogra. "Ela estava na fase de guardar vidrinho", justifica.

Quando Araci enfim des­­cansou, aos 97 anos, Iolando e Margarida iniciaram a lua de mel mais prolongada da paróquia: já dura uns 1,5 mil dias – ao pé do fogão de lenha e sob a sombra de uma camélia gigante, tão resistente quanto as mulheres da família Rocha. Dá flores brancas há oito décadas. Embaixo dela, Marga­­rida descansa seus inacreditáveis 73 anos.

Bem que precisa. Planta rúcula e cebolinha. Poda rosas e põe folhas de louro para secar. Mal larga a enxada e já pilota a vassoura. Por dentro, tudo é um brinco. O piso feito um espelho. Mo­­ça de saia tem até medo. A louça areada. Jesus no Horto reza no quadro da sala. O marido faz sesta.

Seria perfeito, não fosse o cupim e os caprichos térmicos das casas de madeira. São fornos no verão. Frigidaires no inverno. Sem dizer que o banheiro é sob medida para o Pequeno Polegar. Ruim para Iolando, que aos 65 tem vista curta e canelas doídas. "Pedi ao Luciano Huck uma casa nova. Mas ele nem me respondeu", protesta Margarida.

Ela tem esperança nessa crônica, ai. E eu, apaixonado, me arrasto a seus pés. "Desmancha a casa não." Iolando está comigo, mas não abre. Depois de deixar a amada 36 anos em banho-maria, que não provoque. Resta a esperança de que sua musa se renda à súplica dos guris. Em dia de feira na rua, eles fazem feio na calçada: apontam a casinha com o dedo, bobos que só. "Ói, lá..."

Dá até pena dos arranha-céus sem graça.

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