Quando Kauane de Souza, 8 anos, está almoçando, quem estiver por perto que se cuide. De súbito, ela pode esticar a perna esquerda até a altura da cabeça, pondo em perigo a panela de feijão e a travessa de alface. Ao mesmo tempo, a mão direita eleva o garfo com tamanha leveza, que por pouco não o encosta no teto da cozinha. Depois, ajeita-se na banqueta e reparte o bife que lhe cabe, já de olho no corredor minúsculo que a separa da sala. Aguardem: antes de engolir o último naco de carne, há de atravessar a casa aos saltos, como se corresse pelos bosques de Viena.
Dizem que a Kauane é "feita de elástico". As primeiras a notar foram as educadoras da Escola Municipal Vila Zanon, no Tatuquara onde a garota estuda. A história é boa. Todos os dias, assiste-se ali àquele estouro da boiada no qual se transformam os pátios do colégio na hora de recreio. No meio do griteiro regado a Mirabel, porém, dá para ver um espetáculo de graça uma pequenina dando passos de gazela, fazendo pose de tuiuiú. É ela.
Pois cantaram a bola à mãe "essa menina leva jeito pra dançar, dona Patrícia". Leva mesmo. A confirmação veio tão logo Kauane conseguiu uma vaga no projeto social Abrindo Caminhos, das irmãs beneditinas. Foi ali que conheceu sua professorinha de balé, Adriana Mugnaini, a Muga. Por pouco a moça não caiu da barra ao perceber o que chama de "condições físicas absurdas". A meninota da Vila Santa Luzia uma das ocupações irregulares da região, às margens da BR-116 parecia talhada para a sapatilha.
Num dos sábados em que a dança clássica ocupa o Tatuquara, Muga fez o tira-teima. Mirou Kauane com olho clínico: "hum", a todos os movimentos a candidata respondia como se tivesse nascido na coxia do Bolshoi. Cou de pied, passé, developpé. E dá-lhe plié, frappe, fondue. Reparou na envergadura das pernas. Voilá. Analisou a flexibilidade das costas depois do arabesque e panche. Agora adagio. Depois allegro. Por fim, "bravo!"
Dia desses, a miudinha de 1,29 metro e 25 quilos que o vento leva pisou em terra de gigantes: participou da montagem de O Corsário, do Petit Ballet. Antes de entrar no palco do Teatro Positivo, ajustou o tutu e repetiu para si mesma: "Postura, postura." Estava simplesmente ao lado do amazonense Marcelo Gomes, hoje no American Ballet Theatre, da argentina Paloma Herrera e do espanhol Angel Corella. E dá-lhe palmas. Para Marcelo. Para Paloma. Para Angel. Para Kauane.
Lá no Tatuquara não é diferente. Domingo passado, foi a um almoço de Primeira Comunhão. Arrombou a festa. Só o que se ouvia era "Kauane, fica na ponta do pé para a gente ver." É pra já: ela serpenteia e os anjos dizem amém. O pai, o caminhoneiro João Carlos de Souza, 34 anos, está tão animado que decidiu fazer a sua parte. Nem plié nem passé - nas horas de folga ensina à filhota o famoso passinho do Michael Jackson em "Thriller" ("and wonder if youll ever see the sun, you close your eyes, and hope that this is just imagination").
Em tempo. Não peçam a Kauane para falar de Tchaikovsky ou de Mussorgsky. Ela prefere Bruno & Marrone. Quando quer dançar, avisa, "invento minhas próprias músicas e saio rodopiando." Se cansa, distrai-se com a caixinha de música, ao som de "Pour Elise". Canastra, pergunto "por que ela dança?", tal e qual acontece em Billy Elliot, filme sobre o menino pobre da zona carvoeira inglesa que faz audição numa conceituada academia de balé.
O ator mirim Jamie Bell, o Billy, responde: "Eu não sei. É como se eu desaparecesse. Tem um fogo no meu corpo. Me sinto um pássaro." Kauane diz "eu não sei. É que eu sinto uma alegria..." E bota alegria. Ela vive no sétimo céu. Quando passa voando pelo quintal, o poeirão da Vila Santa Luzia se enche de poesia. O lago dos cisnes é ali.
José Carlos Fernandes é jornalista.