Em outubro de 2005, a pesquisadora Marta Morais da Costa provou de uma honraria reservada aos eleitos: ao ser anunciada pelo mestre de cerimônias, em um evento apinhado de educadores, súbito se levantaram as 2,4 mil pessoas que lotavam o Grande Auditório do Teatro Guaíra. Aplaudiram-na, sem dó da palma das mãos.
A homenagem, um flashmob flambado, começou num canto do palco e virou um rastilho, como se a turma do Passe Livre tivesse enviado militantes para sacudir os convidados. Uma surpresa. Marta estava ladeada por figurões e globais, cujas habilidades no trato de plateias podiam representar uma patada de elefante na catedrática. Ela é um tipo – mulher de humor britânico, ternos comportados, cabelos brancos e rugas bem-vindas, mais dada a referências a Antonio Candido e a Umberto Eco do que a microfones e telões. É fato que nem sempre foi assim.
No início dos anos 1960, a jovem catarinense, natural de Ouro, no oeste do nosso vizinho, chegou a ser apontada como a segunda melhor atriz de Curitiba – a primeira atendia pelo nome de Lala Schneider. Em vias de se profissionalizar, fez a escolha de Sofia: trocou os palcos por aulas de Português em escolas públicas da “pqp” e cooperativas educacionais ripongas, ambas hábeis em arrancar a pele, não soprar e ainda atrasar o pagamento. O estágio na penúria lhe valeu. Das classes apinhadas de adolescentes loucos para botar fogo na paróquia, saltou para o corpo docente do curso de Letras da Universidade Federal do Paraná.
Dividia os corredores com sumidades do quilate de Temístocles Linhares. No começo, comportou-se como uma forasteira à espera de um passaporte. Até que lhe caiu a última gota de paciência diante do clima claustrofóbico da torre de marfim, imagem mais-que-perfeita para traduzir a academia de então. O primeiro arranca-rabo foi para fundar uma cadeira de Literatura Infanto-Juvenil. Tomaram-na por uma doida varrida. Não havia, afinal, “nada vezes nada” depois de Monteiro Lobato. Do que ela discordou e fez pouco, bateu o pé e, num surto de virtude heroica, atirou-se ao ringue, de onde não sairia tão cedo. A peleja não rendeu bolachinhas de nata nos gabinetes, mas lhe serviu para ganhar a cumplicidade dos colegas do curso de Educação Artística, com os quais produziu sua primeira dezena de livros ilustrados. Encontrou sua turma. De lá para cá, não parou de virar a mesa e de viver esfolada.
Quem teve a sorte de vê-la conduzindo uma aula sabe o significado da expressão “divertir-se enquanto estuda”
A plateia que urrou o nome de Marta no Guairão agradecia, claro, pelas vezes em que a professora e seus universitários de boa vontade atravessaram pontes e pastos da periferia para falar de Lygia Bojunga e de Ana Maria Machado. Também por estudar teatro – seu firme propósito, em honra de Maria Comminos, Oraci Gemba e Telmo Faria, seus padrinhos de coxia no Colégio Estadual do Paraná. Sobretudo, aplaudiam a profissional que se confundiu com uma prática soberana: a arte de ler. Sua especialidade. A Marta ex-atriz, professora, ensaísta é, sobretudo, “Marta, aquela que lê”. Eis o ponto.
Em crônica, Cristovão Tezza contou que seu sonho era poder assinalar “escritor” e não “professor” nas fichas de hotel em que se hospedou. Sempre lhe avisavam que escrever, afinal, não é profissão. Pois a Marta deveria ser dado o direito de se apresentar como “leitora”. Falar de leitura – e ler – é seu ofício. Ela o faz com tamanho conhecimento de causa que na sua mão essa atividade ganha status de ciência, filosofia, tecnologia. E de caixa de brinquedos. Quem teve a sorte de vê-la conduzindo uma aula – e em 10 minutos armar a leitura em voz alta de uma peça qualquer – sabe o significado da expressão “divertir-se enquanto estuda”.
Foram muitas floradas em um idílio teimoso. Em 1995, ao receber sua aposentadoria na graduação na UFPR, enfiou-se num canto para chorar. “Achei que o mundo tinha acabado.” Deixaria de ter muitos alunos, privando-se daquela variedade de textos e pessoas que faziam da sala de aula um estimulante saco de jujubas. Em poucos meses desembarcou no curso de Letras na PUC, onde sua influência até hoje pode ser sentida. Em 2008, ao se despedir da “Católica”, se lançou no mercado editorial, com passagem pela Aymará, Ahom, Hum e Positivo. Sem trégua. “Eu me senti como se estivesse numa redação de jornal. Nesses lugares, vi o livro nascer e chegar à mão de gente de Salvador, Teresina... O livro deixou de ser teoria.”
Recomendo nem tentar esgotar a carreira dessa leitora, tamanha a quantidade de rodas literárias, contação de histórias e produções editoriais orquestradas com sua batuta. Ela soma mais de quatro décadas em incontáveis incursões à região metropolitana, interiores e sertões. Sabe de escolas que funcionam em cima de borracharias ou dentro de terreiros de umbanda. Num dos raros momentos em que se permite um autoelogio, brinca que fez “operação preferencial pela aldeia”, daí seu magnífico currículo ter nascido, crescido e frutificado em terras brasileiras.
Pense num programa. O Proler da Biblioteca Nacional? Pois ela estava na proa deste navio. O lastro é tamanho que se presta a alimentar uma fantasia – a de que o nome “Marta” seria uma boa senha secreta entre os personagens do fabuloso Fahrenheit 451. O filme-alegoria de Truffaut explora a angustiante possibilidade de uma sociedade que destrói livros – e com eles os leitores, que resistem como formigas armando-se contra a tempestade.
Um exército não lhe falta – seus seguidores são incontáveis, do editor Júlio Röcher, passando por acadêmicas como Ângela Gusso, Elisa Dalla Bona, Letícia Aguiar, Maurini de Souza, uma listagem a perder de vista. Somando ex-alunos de graduação, orientandos, egressos do curso Leitura de Múltiplas Linguagens – que oferecia na PUC –, professores com os quais trabalhou, calcula, conquistou bem mais de mil agentes de leitura. Cuidado: esses caras são uma categoria de gente que bate na porta, com um livro estendido, olhinhos virados, elegantes, sedutores. Um perigo.
Dia desses, Marta ficou presa numa porta com detector de metais. Um fardado que bem poderia dar conta de seis bandidos só com um berro veio em sua direção, resoluto, com a cara que lhe haviam recomendado – a de poucos amigos. Mas que nada. “Professora Marta, lembra de mim?” Era um ex-aluno de Letras. Desencantado com os soldos da educação, empregou-se na segurança pública. Tenho para mim que o moço não dormiu aquela noite, ao lembrar do tapete mágico que a professora Marta estendia e pilotava nas aulas que dava. Centenas e centenas dos que estiveram com ela passaram por essa experiência – experiência que repetem a cada vez que se entregam à alegria de um livro. Aplaudi-la faz parte dessa festa.