A primeira palavra que meu sobrinho Pedro falou foi "chuva". O pequeno ainda empanturrava as fraldas e se entupia de funchicória, mas feito um curumim da floresta já clamava pelas águas. Tupã, que toró.
Há quem duvide dessa história e faça pouco. Mas tenho testemunhas. O piazinho puxava o "chuuuu" das profundezas do esôfago tratado a papinhas; depois soltava o "vaaaa" com a displicência de uma mangueira desgovernada. Só vendo.
Ah, ninguém lhe ensinou aprendeu sozinho, de tanto ver os adultos soltar impropérios contra o tempo nublado com chuvas esparsas. Preferíamos, é claro, que ele batesse palminhas no compasso de "Brasileirinho". Ou que soletrasse "inconstitucionalissimamente", faturando algum no "Se vira nos 30". Mas nada. Teimava em repetir aquela nênia triste, dando início à sina da qual nenhum curitibano se safa a de ser mais íntimo da chuva do que dos amigos e parentes.
Ouvi certa vez que Curitiba tem um dos maiores índices pluviométricos do planeta, equiparando-se à bela e molhada São Petersburgo. Essa afirmação não passa pelo crivo do Simepar, é claro. O que se pode afirmar com alguma ciência é que, desafiando as leis da natureza, as duas cidades foram erguidas sobre o banhado. Deu no que deu, com alguma vantagem para a terra dos czares.
Milhares cruzam o globo e enfrentam os ventos uivantes do Golfo da Finlândia só para tirar uma foto em cima da Panteleimonovsky ou da Alexander Nevsky duas das 342 pontes daqueles alagados longínquos. Sem comentários, uma vez que nossos rios entraram pelo cano, livrando autoridades de usar a cabeça, forçando o povão a se virar com troncos e rezas. Choremos.
Vá lá a chuva está para o curitibano como o sol e a praia para o carioca. Decoramos desde cedo a equação meteorológica que funciona como um dogma: "Se chove, esfria". Para fazer uma média da chuvarada que nos persegue, basta calcular quantos meses os cobertores jazem aos pés das camas. Onze?
Não é de todo mal. Dias sujeitos à garoinha de molhar bobo trazem de barato a quietude, sem a qual seríamos rendidos à febre tropical de Ivete Sangalo. "Chu-va, Chuva...". No mais, depois de pendurar os sapatos atrás da geladeira é bom ouvir Jorge Ben Jor cantando "Chove Chuva". Ou Zeca Baleiro a bordo dos versos de e.e. cummings em "Nalgum lugar". Do not perturbe.
Aliás, deve ser raro alguém da cidade que não tenha passado pelo menos uma grande data abraçado a um guarda-chuva. Diz-se até que casar em "dia feio" dá sorte. Sugiro a quem quer que se encaixe nesse caso que se apresente ao IBGE. Se provada a relação entre chuva e matrimônio, poderemos nos tornar a capital mundial dos finais felizes, aquecendo o mercado das grinaldas impermeáveis e das gôndolas.
Um aparte. Qualquer poesia ou piada sobre a chuva soa imoral em meio a esses dilúvios de agora. São águas amargas. Bom seria se à maneira do Museu da Pessoa que recolhe depoimentos de gente comum e as imortaliza na rede de computadores alguém se dedicasse a gravar as lembranças da tempestade.
Seria o Memorial da Chuva. Seus arquivos cruzariam dados do Holocausto com os dos deslizamentos. Ficcionistas encontrariam ali pasto para a literatura. Planejadores urbanos aprenderiam a colocar a tempestade nos planos. Fotos e músicas e filmes nos seduziriam com Gene Kelly e "Singing in the rain". E nos acordariam com verdades sobre a Região Serrana.
Houvesse o memorial, eu arquivaria lá a fala da aluna a quem pedi uma foto da infância para um exercício. Não podia. Os aguaceiros de Blumenau levaram-lhe o álbum de família e o sorriso. Também gravaria no site o ocorrido com a moradora de uma favela da CIC: calejada pelas enchentes, mantém seus pertences em saquinhos de plástico. Graças a essa tática, ainda tem Certidão de Nascimento e uma retrato do falecido.
Como ninguém é de ferro, mandaria para o site relato de uma corrida que fiz na chuva em 1978. Ritual de passagem. Lembra o seu? E arriscaria uma teoria a de que Pedro, o guri do começo do texto, queria era falar com a chuva. Pudera.
Essa coluna é dedicada à jornalista Bruna Walter, que anda em busca das memórias da chuva para uma reportagem.
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