O agente penitenciário Marcelo Leoncio, 48 anos, se considera um homem vacinado contra a sofrência. Soma quase três décadas de serviços prestados ao sistema prisional. Nesse tempo, calcula, viu coisas que a maioria conhece apenas do cinema, quando muito. Foi inclusive preso, provando a madureza do lado de lá. Aconteceu em 2001, durante uma rebelião na PCE, ocasião em que foi feito refém, por sete dias e uma eternidade. “Um trauma superado”, avisa o homem de grandes muques, bom papo, ligado 100% a uma radioescuta: “Prossiga...”
Mesmo com as emoções debaixo de rédea curta, esta semana Marcelo teve uma súbita comoção, ao presenciar as lágrimas copiosas de um preso de 18 anos, capturado depois de afanar um celular. “A gente acaba se acostumando a cenas assim. Mas, de repente... Tive muita pena. Eles são cada vez mais jovens. Sabia?” Drauzio Varella devia ouvir Marcelo para uma nova versão de Carcereiros.
As “cenas assim” a que se refere ocorrem no Setor de Triagem da PCE, em Piraquara. O trabalho do agente é fazer a identificação dos detentos, para que sejam destinados aos presídios que lhe cabem. É vida de gado. Em dias de maior movimento, o setor chega a receber 60 presos de manhã à noite – algo como um a cada seis minutos.
A rotina é tão mecânica como perguntar “CPF na nota” ou “débito ou crédito”. O algemado é conduzido até a sala de Marcelo, que faz fotos de frente e de lado, e detalhes das tatuagens. Pede-se o nome completo, o nome da mãe, entre outras informações capazes de garantir que quem está ali é ele mesmo. No ano passado, o setor derrubou 138 nomes falsos. Em 2016, o número deve chegar a 80. “Muitos casos eu resolvo com a ajuda do Facebook”.
(“O que você fez?”, pergunta a um recém-chegado. “Homicídio”, diz o sujeito, branco como um papel. “Você é ‘seguro’ ou pode ficar com os outros presos?” O jargão “seguro” se destina aos que cometeram crimes sexuais, sendo punidos com a mesma moeda. Um segundo a entrar na sala de identificação também é jovem. “Nome do pai?” Ao que ele responde: “Não tenho pai”.)
De todas as lembranças de Marcelo Leoncio, as mais impressionantes eram as que se davam nos fins de ano
Quando termina o batente, Marcelo Leoncio está povoado de episódios da vida como ela é. Tantos dizem que não têm pai que esse dado acaba virando estatística, sociologia e raiva. Há quem não tenha mãe, acreditem. Profissão? “Bandido”, declaram alguns. Se dissessem carpinteiro estariam mentindo. Irônico, pois é. Por esses dias, Marcelo fez a identificação de quatro graúdos com curso superior. Passaram pelo mesmo ritual dos pobres diabos, mas nada que o faça mudar de ideia sobre a origem de quem vai penar nas cadeias.
Para se livrar da nhaca deixada pelas histórias tristíssimas, Marcelo se entrega às delícias do futebol amador. Completou 123 jogos como treinador no Combate Barreirinha, mito da suburbana. Nas horas vadias, também dirige moto. Conta que foi até o Uruguai, de estirão, e coisa e tal. De vez quando, encontra ao acaso ex-presos na rua ou mesmo num bar. Não se furta de uma conversa. “E aí?...” “Pois é, ainda estou na correria”, costuma ouvir. Ou seja, permanecem fieis à profissão declarada no formulário.
O encontro de Marcelo Leoncio com as prisões se deu em 1991. Tinha 21 anos, cursava Educação Física e se encantou com a possibilidade de ganhar 18 salários mínimos. Logo no primeiro expediente no Presídio do Ahú, um preso veterano perguntou se ele, tão novinho, não sentia medo de levar uma faca nas costas. Passou a ter. A facada não veio, mas anos depois os inquilinos de uma cela inteira voaram na direção de seu pescoço. Um telecatch. Também viu um preso ser assassinado no pátio, como um animal. No geral, provou de momentos comuns – eles existem mesmo no pior dos mundos.
Foram 15 anos de expediente no secular presídio paranaense, sua casa. Cita estrelas do noticiário policial como se falasse de colegas de pelada. “O colombiano Carlos Mejía era da 614”; “onde será que anda o João Maverick?”. Nas suas memórias não tem muito bicho-papão. Lembra de cuidar sozinho de um banho de sol para 300 presidiários, sem que tenha virado farelo. De conversar na porta das celas, sem tremores nas mãos. De chorar ao ver o que ocorria nas dramáticas visitas de familiares. Do impacto da primeira vez que viu um preso apanhando. A arquitetura do Presídio do Ahú favorecia que houvesse hálito entre detentos e agentes, o que a nova ciência da segurança pública entendeu ser melhor deixar no passado.
De todas as lembranças de Marcelo Leoncio, as mais impressionantes eram as que se davam nos fins de ano. O astral do cadeião descia aos infernos. Em plantões de réveillon, nunca escutava os fogos que ribombavam no Cabral, tamanho era o barulho que os 900 presos faziam, ao chutar e balançar as portas das celas, num desespero compatível com as piores tragédias. “Inútil tentar imaginar.”
Falamos das “Aparecidas”, onipresentes nas tatuagens e nas paredes. Como nunca imaginei o que ele contou, pulo. Vamos para as “jegas”, jargão de presídio para os catres. Cada cela tinha três triplex. Cada cama virava uma casa. O preso fazia um “come quieto” – cobria a área que lhe cabia no minifúndio – e abrigava lá dentro uma biblioteca, botava fotos, recortes de mulher pelada, roupas penduradas, bolachas, sua própria televisão. Dali saíam apenas para usar a latrina, tomar banho de sol, gozar da visita íntima. “O Ahú era bem arrumadinho...”
Passado o buraco da agulha, a tendência era virar colégio interno. Alguns trabalhavam. Lavavam sua roupa. E maquinavam como fugir dali – no que o velho Ahú não se mostrava muito favorável. Mas tem sempre um Papillon, como o que foi à cozinha buscar açúcar para um agente e nunca mais voltou. Havia lazer. Nos fins de semana, o palco do pátio recebia o grupo de pagode Unidos do Cárcere, cantores evangélicos ou sacolejos do dançarino S.S., hóspede conhecido dos anos 1990. Num único domingo, 160 casais se formavam na área do motel, enquanto palhaços distraíam as crianças.
Com o encerramento do Presídio do Ahú, em 2006, o prédio passou a ser cortejado para locação de filmes e ensaios fotográficos. Para acompanhar a produção, tinha de ser... o Marcelo Leoncio. Divertiu-se pra caramba. Conheceu Francisco Cuoco e Rodrigo Lombardi durante o remake da novela O astro. Contracenou com Daniel Oliveira em 400 contra 1 – uma história do crime organizado, de Caco Souza. Fez uma ponta, no papel do carcereiro Rojão, e deu uns tabefes em Daniel. Esteve perto de João Miguel, na filmagem do excelente Estômago, do curitibano Marcos Jorge. “Todo mundo queria tirar foto comigo. Sabe por quê? Eu vinha do mundo real.”
A propósito, Marcelo é quem desvenda o enigma das asas de anjo, com pena e tudo, que imperam numa das celas do Ahú. Foram colocadas ali para a filmagem do curta-metragem Aranceles, de Melo Viana. A informação levou solitárias abaixo minha ilusão de que um preso tenha brincado de João Gibão, sonhando poder voar. Só me resta dizer que, se a realidade não corresponde à ficção, azar da realidade.
***
A quem interessar, o agente penitenciário bem que tentou escrever suas memórias do cárcere. Mas acredita ser melhor na fala do que na escrita. Além do mais, não é um bom momento. A cada vez que ouve falar da demolição do Ahú, alguma coisa acontece no seu coração.
Pragmatismo não deve salvar Lula dos problemas que terá com Trump na Casa Branca
Bolsonaro atribui 8/1 à esquerda e põe STF no fim da fila dos poderes; acompanhe o Sem Rodeios
“Desastre de proporções bíblicas”: democratas fazem autoanálise e projetam futuro após derrota
O jovem que levou Trump de volta ao topo
Deixe sua opinião