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josé Carlos Fernandes

Memórias esparsas da “Chácara do Alemão”

 | Foto: Albari Rosa/Gazeta do Povo / Arte: Felipe Lima
(Foto: Foto: Albari Rosa/Gazeta do Povo / Arte: Felipe Lima)

Dona Eleonora Fast, 87 anos a completar em agosto, nos dá prazer em conhecê-la. É menonita piedosa, nasceu na Ucrânia – na antiga URSS – e mora no Boqueirão desde os tempos em que o bairro merecia este nome. Chegou ao país menina de colo, a exemplo de centenas de outros foragidos da ira sanguinária de Stálin. Seus pais – Jacob e Anna Neufeld – compraram terras, criaram vacas e abasteceram a bacia leiteira de Curitiba por quatro décadas, assim como seus conterrâneos.

Toda saga de imigração se impõe por suas tinturas épicas, mas a dos menonitas desafia qualquer script. No século 18, discípulos do protestante Menon Simons (1496-1561) foram levados da Alemanha para o Império Russo por Catarina, a Grande, com a missão de desenvolver a agricultura. Retribuíram o favor com colheitas que enchiam os olhos e os bolsos da imperatriz. O sonho acabou com a Revolução Bolchevique, em 1917. A colônia passou a ser vista com desconfiança, mas sair daquelas divisas era de fato um romance de Boris Pasternak. Foi sangue sobre a neve, vencido com escassas rações de pão torrado e frango frito.

Dona Eleonora tinha apenas três meses de idade, em 1929, quando seus pais deixaram Memrik e se instalaram num barracão modelo “campo de concentração”, em Moscou – à espera de uma autorização para abandonar a ditadura soviética. Tanto lhe contaram o acontecido que é como se pudesse lembrar. Descreve com mesuras tios e tias enviados para a Sibéria. Mortes à queima-roupa, para que servisse de lição. Cabeças cortadas. Botas de sovietes batendo nos assoalhos.

Os que conseguiram retornar à Alemanha – muitos depois de cozinhar o próprio couro das sandálias para comer – enfrentaram novo calvário. Não havia lugar para eles na República de Weimar, onde metade da população estava desempregada. Finalmente, num navio, os Neufeld ouviram falar que iam para um país chamado “Brasil”. Desembarcaram na Ilha das Flores (RJ), seguindo para São Francisco (SC). Uma viagem de trem, outra de carroça, ergueram na serra catarinense uma casa com folha de palmito.

É história longa, bela e, se me permitem um conselho, peçam a um menonita para contá-la. Eles o fazem com requintes. Uma conclusão deve se repetir com qualquer que seja o narrador: menonita é sinônimo de ser religioso, trabalhador sem descanso, amarrado à família, receptivo e anticomunista até o último fio de cabelo. A palavra comunismo faz com que arroxeiem as bochechas vermelhas. Daí a piada pronta – permitam assim chamar – de um episódio trágico do passado curitibano, ocorrido na hoje extinta “Chácara do Alemão”.

Menonita é sinônimo de ser religioso, trabalhador sem descanso, amarrado à família, receptivo e anticomunista até o último fio de cabelo

Em meados do século, os menonitas deram de se preocupar com as escapadas de seus jovens – a bordo de bicicletas – para pegar uma matinê na Cinelândia da Rua XV. Era preciso arrumar um lazer para a turma ali mesmo, em riba das cancelas. As terras de Jacob Neufeld, o pai de Eleonora, pareciam perfeitas. Havia um bosque – em cujas árvores foram instalados balanços –, campo de futebol e uma nascente de água, que depois dariam lugar a uma piscina natural, gelada como um lago de Kiev. Para somar, a incansável dona Anna – que tinha braços não só para se levantar às 3 da madruga e se pôr a ordenhar vacas – também faria os lanches.

Deu certo. A “chácara” se tornou não só ponto de encontro da moçada como atraía vez ou outra algum forasteiro, o que espalhou a fama do lugar. Até que em meados da década de 1960, os ventos frios das estepes pareceram de novo soprar nas orelhas daquela gente. Fiscais da prefeitura deram de implicar com a hegemonia menonita na distribuição do leite. Numa descrição sem meios tons, Eleonora conta da manhã em que a carroça da família foi parada, as garrafas vistoriadas e, com a desculpa de haver um cisco aqui ou ali, todo o líquido acabou jogado no chão. Com ciência e sadismo, os pães foram atirados em cima e esmagados com os pés do tirano.

Restou a Neufeld alugar e depois arrendar a “Chácara do Alemão”. Apesar da sugestão, Jacob não era propriamente um tipo popular. Sua filha Eleonora e a neta Verônica Klassen o descrevem como um homem reservado, paciente, mas que não o cutucassem com vara curta. Era capaz de dar uns petelecos nas vacas. Em 17 de dezembro de 1968, teve seus cinco minutos. Sem que soubesse, o parque que criou serviu de sede para um encontro regional da União Nacional dos Estudantes, a UNE, na ilegalidade desde 1964. O conclave resultou numa ruidosa batida policial, apreensão de 42 jovens e condenação arbitrária de 15 deles à prisão, na hoje extinta Penitenciária do Ahú. Na capa da Tribuna, a manchete: “Um congresso clandestino acaba assim”.

O episódio atabalhoado é uma lenda entre os que resistiram à ditadura militar. Nasceu disfarçado de churrasco de estudantes, mas fadado a dar errado. O encontro da “Chácara do Alemão” aconteceu sete meses depois da Ocupação da Reitoria da UFPR, contrária às ameaças de privatização vindas do reitor e ex-ministro da Educação Flávio Suplicy de Lacerda; 65 dias depois da prisão de 700 estudantes no 30.º Congresso da UNE em Ibiúna, São Paulo; e apenas quatro dias depois da promulgação do Ato Institucional número 5, de 13 de dezembro de 1968. Para azedar ainda mais o leite, o sítio de lazer do senhor Jacob ficava nas barbas do Quartel do Boqueirão.

Há controvérsias. “Se o Ahú, onde ficamos presos, era longe, imagine o Boqueirão. Não havia a sensação de proximidade com o quartel. Não diria que foi ingênuo”, comenta a jornalista Beth Fortes, uma das presas em 1968 e condenadas em 1969. “Quando tomei o ônibus na Praça Rui Barbosa e vi um passageiro lendo jornal, tive a sensação de que estávamos sendo seguidos. Ali me veio a certeza de que o ‘Ibiúna 2’ ia cair”, conta o advogado Vitório Soratiuk – também condenado.

O rojão solto por um dos participantes – uma espécie de “sacode barata voa”, assim que a Polícia Militar chegou – em nada refrescou. “Ainda hoje tem gente que conta dos jovens correndo pelos nossos quintais”, lembra Eleonora. Um dos filhos da matriarca menonita recorda dos caminhões – que mais pareciam furgões de frigorífico – enfileirados para carregar os congressistas. Era calor e diz-se que algumas conduções circularam lotadas por um dia todo, de modo a pressionar os congressistas a entregarem os dirigentes. Para todos os efeitos, a turma presa na “Chácara no Alemão” não foi torturada. Melhor desconfiar da tese.

Quanto a Jacob Neufeld, acabou elencado entre os subversivos – bem ele que tinha ojeriza a qualquer coisa que lembrasse o comunismo. Cansou de explicar aos fardados que não tinha nada a ver com as cartilhas apreendidas, que era só o que lhe faltava, mas o que lá entendiam seus interlocutores sobre Menon; Catarina, a Grande; Stálin, etc. “Ele se incomodou”, conta a sereníssima Eleonora, sobre as idas e vindas do pai ao quartel, para depor. O episódio – avisa ela – foi para o baú dos silêncios da comunidade menonita. Nada se sabe sobre a identidade do jovem que alugou a chácara. “A organização do encontro era da UPE – União Paranaense de Estudantes – e quem sabe já morreu”, arrisca Soratiuk.

Na melhor das hipóteses, não custa sonhar , era alguém que via no leite derramado dos filhos de Menon uma injustiça tão grande quanto aquelas que combatia. Façam suas apostas.

Epílogo

A “Chácara do Alemão” foi loteada no fim da década de 1970. Ficava às margens da Rua Maestro Carlos Frank, na altura da Escola Municipal Leonor Castellano. De tudo, sobrou um cadinho de bosque na região. O avanço da cidade até o recanto mexeu com os nervos de Jacob Neufeld. Ele morreu em 1980; dona Anna, em 1987. Ambos se recusavam olhar o asfalto engolindo o lugar que tinham plantado depois de tudo.

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