Não faz muito tempo, me peguei torcendo por uma guria de Curitiba que concorria no programa de tevê "Soletrando". A candidata era crânio, mas passou pelo infortúnio de ter de desossar uma palavra que nem por reza brava figuraria no linguajar de uma ginasiana: "Hagiografia". Se pudesse lhe daria cola, pois foi mais ou menos na idade dela, há anos-luz, que me vi encrencado por causa do mesmo vocábulo.Foi ao conhecer a biblioteca de um seminário católico, no interior de São Paulo. Mal entrei, meu olho grudou numa plaqueta em que estava escrito "hagiografia", nome pelo qual são classificadas as vidas dos santos. Perguntei o que era e levei de troco um "como é que você não sabe do que se trata?" Senti a fogueira da Inquisição sob meus pés.
Como troco, passei a frequentar a seção, até porque não tinha juízo nem licença para ter com as Gabrielas e Teresas de Jorge Amado, o que fiz com luxúria e devoção assim que completei 18 anos. Contentei-me à época com Rita de Cássia, Terezinha do Menino Jesus de quem já recebi rosas e com São Francisco, um ídolo pop com quem espero prosear num paraíso confortável e sem hora para sair da cama.
Embora tenha povoado a adolescência de hagiografias, não foi aí que se iniciou minha peleja nesse pasto. A primeira santa a gente nunca esquece. E a primeira se chamava Bernadete Soubirous, a vidente da Virgem de Lourdes, na França de meados do século 19.
Conheci-a logo que aprendi a ler. Nunca mais nos largamos. Tenho até hoje o livrinho de M. Battistella, ilustrado por G. de Luca e editado pelas Paulinas em 1965. Não empresto, não vendo, não doo. Quando o folheio, fico me achando o Pablito, astro-mirim de Marcelino, Pão e Vinho, e lamento a inocência perdida. Malditos baralhos suecos.
A vida da Berna virou um filminho na minha cabeça. Primeiro ela aparece pobrezinha feito uma carrinheira do Parolin, catando gravetos numa tarde fria. Depois, beijando o chão para redimir os desviados. Por fim, levando corridão de tudo que é autoridade eclesiástica inclusive de Nossa Senhora, que não lhe dá mole: "Felicidade, filha, só no Céu."
Anos depois, numa Sessão da Tarde, assisti à Canção de Bernadete, filme que deu o Oscar a Jennifer Jones, em 1944, por sua atuação no papel-título. Ao lado da ópera Hair, o filme é dos meus. Jones minha tradução audiovisual da venerada francesa morreu ano passado e até onde se sabe, nunca foi santa. Mas vá-lá: a atriz teve de fazer das tripas coração para se livrar da aura de Bernadete e encontrar seu lugar no Panteão do cinema.
Conseguiu. Hoje, invocação de seu nome não traz de imediato a Gruta Massabielle, a da aparição, mas uma mestiça enamorada de um homem casado em Suplício de uma saudade. O filme marcou tanto que sua música-tema, Love is a many-splendore thing cantada por gente como Don Cornell, Frank Sinatra, Nat King Cole e até Ringo Starr está colada à imagem de Jennifer. Ela virou uma deusa.
Lembro, certa vez, de escutar de um professor que os santos nos cativam, mas dificilmente nos vemos neles. Daí a predileção pelos mitos sejam os gregos ou os fabricados em Los Angeles , pois são viralatas como nós. Concordo. Mas digo que parte da culpa é dos hagiógrafos. Esses cabras bebem na tradição barroca e na romântica. As descrições que fazem da piedade cristã são tão eloquentes que fazem do Olimpo um lugar banal como o quintal da nossa casa. A gente cresce e começa a ressabiar das tinturas dos martírios, das almas impolutas e das virtudes que nem nossa santa mãezinha conseguiria alcançar.
Tenho cá para mim que a hagiografia devia apontar umas diabruras dos santos, que é para a gente se confortar. Cá entre nós: Santo Agostinho foi namorador, São Tomás era glutão e Tereza de Ávila não devia ser chamada de Terezona por causa de sua doçura. Que é que tem? São titãs. Se você pegar um desses livros para ler, uma dica, procure defeitinhos nas entrelinhas. Eles sempre aparecem e nenhum impediu que Bernadete, a santa; Jennifer, a diva; e eu, o pecador, tenhamos sido felizes para sempre.
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