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 | Arte: Felipe Lima
| Foto: Arte: Felipe Lima

A aprovação da "PEC das Domésticas" se tornou a melhor novela da temporada. É o folhetim do século, a conversa da hora. Em particular, estão bem ilustrativas as animações preparadas pelas emissoras de tevê e os infográficos de jornais, com o que pode e o que não pode daqui pra frente. Cafezinho depois das 20 horas? Só pagando. Cafuné? Só se for em Paquetá, no século 19, no cabelo da Moreninha.

Daqui a pouco, vai surgir empresa especializada em avaliação 360 graus das copeiras, jogando na centrífuga da história, de uma vez por todas, a mítica figura da empregada doméstica, "praticamente da família", a lavar, a passar e a sorrir com a alegria de uma criada dos Von Trapp. Ou pelo menos assim achávamos.

Em 2007, ao lançar o estudo A cabeça do brasileiro, o sociólogo Alberto Carlos Almeida mostrou quanta poeira se esconde por trás da propalada democracia entre patrões e empregados domésticos no Brasil. Assistir à tevê com madame? Claro que pode, desde que a criada não sente no sofá, mesmo que convidada, mas na cadeira ao lado, pois ali é seu lugar. Pois é.

Difícil ignorar que há camadas de sofrimento no país pré-PEC. Fizemos muitas mártires de Santa Zita, a protetora da categoria. Carecia mesmo erguer um "monumento à empregada desconhecida", como fazem para os soldados mortos nas guerras. E desencadear nas universidades uma onda ensaística sobre a condição serviçal nos trópicos. Exagero?

Na década de 1990, o antropólogo Joel Zito fez do projeto A negação do Brasil, com livro e documentário, um choque de realidade sobre o lugar dos negros na dramaturgia de tevê. Graças ao Zito, passamos a sentir vergonha do que antes parecia cordialidade racial. Penso que seria o caso de fazer o mesmo sobre as domésticas, vasculhando romances, filmes, músicas e novelas que as retrataram. Acho que nos surpreenderíamos. Para bem e para mal.

Já tenho meus palpites sobre as obras que melhor traduzem nosso olhar vesgo sobre as empregadas. Para mim, o suprassumo do gênero é o romance Uma vida em segredo, de Autran Dourado. Deveria ser declarado símbolo da PEC. Tudo bem que a personagem Biela é uma parenta que trabalha na casa. Tem privilégios de sangue. Mas seu lugar é o da típica "agregada", um dos papéis mais cruéis da vida brasileira, ao qual muita doméstica por aqui é candidata.

A agregada tem lugar à mesa, como a Annie (Juanita Moore), de Imitação da Vida. Vai à missa de braço dado com iaiá, feito a Mammy (Hattie McDaniel) de E o vento levou. Serve brigadeiros nas festinhas, mas pode sentar para prosear se quiser. Ninguém vai reclamar. Está a anos-luz da pérfida Juliana trazida dos infernos por Eça de Queirós em O primo Basílio. Engoma e passa com o júbilo de uma mamãe Dolores. É ombro amigo. Filha como as outras filhas, mas sem direito a herança. Eis o babado.

Ouvi muito especialista reclamando o fim anunciado dessa relação delicada. Faz algum sentido. Mas é lúcido peguilhá-los. Lembro da Nice, pelo que sei, a primeira doméstica a virar protagonista de uma novela. Foi no ano de 1976, em Anjo Mau. Mesmo quando a personagem casa com o patrão, sua intérprete, Suzana Vieira, amarrava o cabelo com um cadarço de sapato, "para que o público não esquecesse a origem dela". Nice vivia em extremo desconforto existencial. Não sabia o que era o mal-estar da civilização, mas devia ser algo parecido com o que sentia ao passar em roda da despensa.

Esses colóquios em torno da PEC, aliás, trazem à lembrança as domésticas que cruzaram nossa biografia. Vejo-as fritando bifes, contando causos das roças e vilas que mal sabíamos existir. Tenho recordado das doideiras da gaúcha Iolanda; da simples Maria de Espigão das Antas; da negra baiana Vitalina, que já passou dessa para melhor. Bielas, Nices ou Roxanes?

Sim, tem a Roxane, vivida por Graziela Moretto em Domésticas, o filme subestimado de Fernando Meirelles. Ela diverte. Na "constelação faxina", está no naipe das desbocadas Edileuza (Claudia Gimenez) de Sai de Baixo e Sexta-Feira, de Mara Manzan, em Salsa e Merengue. Leva tudo no sapatinho. Sonha ser modelo. Mas não sai do lugar.

Meirelles só filma sua heroína vista da sala em direção à cozinha. Dali se vê o rádio em que toca Lindomar Castilho e a porta do cubículo com banheiro demarcando a geopolítica domiciliar. Aos poucos descobrimos que a ladina Roxane é tão ingênua quanto o ofício que exerce – um ofício paternal que a impede de sair da gaiola na qual se acostumou a desfilar.

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