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 | Arte: Felipe Lima
| Foto: Arte: Felipe Lima

Lembro como se fosse hoje. Foi em agosto de 1997, corria a Bienal do Livro do Rio de Janeiro, passava nos cinemas o filme O que é isso companheiro?, de Bruno Barreto – baseado em obra homônima de Fernando Gabeira. E o escritor chileno Antonio Skármeta estava no Brasil para lançar seu mais novo romance, Não foi nada.

Skármeta – suando em bicas com o calor carioca – mexia-se como um ventilador na velocidade máxima diante daquele séquito de jornalistas reunidos para uma coletiva. Pudera. Havia gente de todo o país e teria de falar de assuntos que lhe atacavam os esporões: a ditadura Pinochet (um nome que se negou a pronunciar), os infortúnios dos exilados políticos latino-americanos e, claro, tortura.

Eram, afinal, temas de seu livro. Mas também temas íntimos demais para tratar na frente daqueles tapuias prestes a devorá-lo em busca de uma boa matéria. Deu para notar o nervosismo. Alguém bem que tentou refrigerar o ambiente fazendo a mais previsível das perguntas – qualquer coisa sobre a experiência de ver o livro Ardente paciência ser adaptado pelo cineasta Michael Radford e redundar no sucesso O carteiro e o poeta. A resposta só faltou ser servida com chá e polvilhos.

Mas eis que um repórter quis saber se Skármeta tinha dado um pulinho aos cinemas para assistir a O que é isso companheiro? O homem pulou foi é da cadeira, vermelho como um peru diante do abate. Virou ele o entrevistador. O livro de Gabeira, como se sabe, traça um perfil algo ingênuo dos guerrilheiros que sequestraram o embaixador americano Charles Elbrick, em 1969, o que na tela grande é acentuado pela atuação de Pedro Cardoso, engraçado até quando se espreguiça. "Como vocês podem aceitar isso?", esbravejou o escritor.

Até hoje não consegui responder se a capacidade de esquecer é uma qualidade ou um defeito dos brasileiros. Confesso que olho com uma ponta de inveja para as mães da Praça de Maio batendo panelas pelas ruas de Buenos Aires. E para os chilenos, que ainda protestam o 11 de setembro deles, em 1973, quando o palácio La Moneda foi invadido e o presidente Allende liquidado. Apagar da memória? Mais fácil lhes seria implodir os Andes.

A explicação que Skármeta não conseguiu deve estar impressa na obra de Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Hollanda, Darcy Ribeiro e Roberto DaMatta, entre outros que dissecaram nossa natureza cordial, nossa resistência passiva, nosso jeitinho que não serve só para furar a fila, mas para despistar o passado. "Deixar para lá", por certo, é nosso remédio para sobreviver a tantos desmandos. Respondemos a eles desaforados, mas qual criadas da obra de Machado de Assis – empurrando a sujeira para debaixo do tapete. Uma finge que limpou. A patroa faz de conta que não viu. "É muito íntimo senhor Skármeta", quisera ter respondido.

Esta semana – justo a que foi instalada a Comissão da Verdade, que vai investigar os crimes da ditadura militar no Brasil – uma intercambista argentina me pediu para sugerir filmes e livros sobre os nossos anos do chumbo. Quer comparar os dois países para um projeto de graduação. Ouvira falar do nosso esquecimento, mas se disse impressionada ao ver o tamanho da lista, pipocada de longas de Roberto Farias, Lúcia Murat, Toni Venturi, Beto Brant; a minissérie de Gilberto Braga, e tantas páginas escritas por Alfredo Sirkis, Maklouf Carvalho, Zuenir Ventura e, claro, Gabeira – sem falar nas músicas e peças de teatro.

Fiquei ressabiado. Hum, talvez não sejamos tão distraídos quanto fazemos crer. Brasileiro "leva para casa", como se dizia. Esse capítulo da história do qual, safos, já nos permitimos até rir, para escândalo de nossos vizinhos hispânicos, deve ser um culto secreto, entre quatro paredes. Ali ainda choram Marias e Clarices. Não foi nada? Pois esperem até ouvir o bater das panelas.

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