Sempre digo que hei de publicar as frases feitas do meu pai. Aposto que toda a gente vai querer ler. Serei celebrado. Farei fortuna com esses dizeres, incluindo aqueles que só às paredes confesso. Arrancarei gargalhadas. Sim, porque, apesar da sinceridade saloia, os ditos do meu velho nem sempre carregam a gravidade dos tribunais. Sabem ser divertidos.
Alguns parecem verdadeiros jogos de decifrar, a exemplo do que ele repete a cada vez que alguém solta uma infame piada de português: "Burro nasce no mundo inteiro, português só nasce em Portugal". Outras são contestáveis, como "quem sai aos seus não degenera". Inútil discordar: para ele, seus ditados, dos melhores aos piores, só não entraram para as Tábuas da Lei porque o Altíssimo dorme até tarde.
Tempos atrás, ao saber que um ex-aluno jovem talentoso passava por um infortúnio profissional, liguei para lhe oferecer o ombro. A situação pedia. Foi quando confidenciou que uma "coisa" que eu disse em sala de aula estava lhe servindo de refresco nas horas ruins. Repetiu-a com a pompa de um radialista da madrugada: "Para chegar a padre tem de querer ser bispo. Quem só sonha ser padre nem chega a sacristão".
Crispei. Como mandam as regras da ABNT, a citação deve ser dada a quem é de direito. E essa não me pertence. Tampouco recordava tê-la dito, mas lembro de tê-la ouvido pelo menos 7.839 vezes, com variações para o tema (as partes de um frango, por exemplo) não propriamente em conversas cordiais à mesa da cozinha. Meu pai a repete, três tons acima, a cada vez que constata nos filhos degenerados a falta de ambição. Devo ter reproduzido a frase só por sarro, o que por ironia salvou uma alma do suplício.
Admito que por um lapso de segundos, como se diz, pensei que o rapaz fosse soletrar, com aspas, alguma frase que roubei do Wittgenstein, da Hannah Arendt a quem andei namorando ou quem sabe um Guimarães Rosa, que com seu sabor de biscoitos saídos do forno é sempre um recurso infalível para corar aulas pálidas. Mas o consolo daquele moço, pobre moço, não veio da filosofia nem da literatura. Veio do repertório bronco de um imigrante, que no passado fez de uma frase arrivista um estímulo para aturar a travessia do Atlântico. O que iria encontrar? Melhor sonhar com mignons para quem sabe se fartar de costelas.
Há pouco mais de um mês, aconteceu de novo. Reencontrei uma amiga, recém-saída de uma grave contenda corporativa. Sentia-se injustiçada, mas sacudira a poeira e voltara por cima, com a pele ótima, aliás. Mal nos desamarramos de um longo abraço, ela me agradeceu por uma frase que lhe disse. Fora seu lencinho Kleenex no exílio. O trailler de um bom filme. De novo, esperei alguma menção a um dos autores que ficam com meu salário no balcão da Livraria Cultura. Nada. Com a dramaticidade de uma candidata ao Actors Studio, suspirou: "É no balançar da carroça que as abóboras se ajeitam". Devo ter feito cara de Valdirene.
Essa frase é fofa demais para vir de uma casa portuguesa, onde os bordões têm sabor de bordoadas. Fernando Pessoa passa longe. O autor da máxima que redimiu minha colega se chama Anatole, que suponho falecido, tio do artista plástico Sérgio Kirdziej, com quem tive aulas na Escola de Belas Artes. Melhor explicar.
Sérgio a repetiu depois de algum mergulho teórico nos labirintos da estética, que nos conduzem de Beuys a Kiefer, mas sem placa de "chegada". Uma canseira. Por isso soou tão espirituoso. Foi como receitar catinga de mulata para curar fratura no fêmur, e dar certo. Concorreu para o sucesso da performance o professor ter imitado o jeitão polaco do parente. "Como dizia meu tio Anatole..."
Nos anos seguintes, repeti a frase com sotaque e tantas vezes que já me perguntaram se esse Anatole é meu tio. Não é. Nem ele, nem o soberbo frasista Anatole France, autor da belíssima dita "os deuses têm sede", que também papagaiei por aí, sem que tenha enxugado o pranto de ninguém, até onde eu saiba.
Não é preciso ser o gênio da lâmpada para entender o efeito das frases feitas. Elas tendem a legitimar o que já pensamos, o que poupa esforços. Na melhor das hipóteses, funcionam como uma embreagem, que nos ajuda a engatar nova marcha e sair do rancho fundo em que nos metemos. É uma mera estratégia de sobrevivência, mas tem lá sua poesia. Na hora da dor, uma ideia sacada tem o efeito de um emplastro Sabiá. Cola à pele. Tem perfume. Alivia a dor, o que nos serve de amparo, até que as abóboras se ajeitem.
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