Eu, você a maioria não saberíamos o que fazer diante de um corpo estendido no chão. A atriz Cíntia Glock também não. Até se ver diante de um esfaqueado recém-alçado à vida eterna, a dois palmos da ponta de sua bota, manchando de sangue as ruas de Colombo. Foi há sete anos. Ganhou sete vidas desde aquele dia.
Sabe-se lá por quais mistérios, diante do morto Cíntia deixou de ser a guria capaz de desmaiar se a manicure lhe arrancasse um bife da cutícula. Sem fricotes, jogou a cabeleira loura para trás, ajudou a colocar a vítima no bandejão do IML e descolou uma cova de emergência. Foi tudo tão rápido que até ela, moleca graduada, estranhou sua performance, digna de uma militante sueca num campo de refugiados.
De lá para cá não tem feito outra coisa, sem trégua nem pro xixi. "Durmo com um olho aberto e outro fechado", resume. Toca o celular e lá vai ao encontro de tragédias gregas ocorridas no Jardim Ana Terra ou na Vila Liberdade. Ela estima que a cada mês ajude a sepultar uma média de 32 mortos, quase sempre com serviço completo: dá uma mãozinha nos trâmites burocráticos, enxuga lágrimas de outrem e, se preciso for, passa uma base na cara do falecido e lhe escolhe a roupa. Com sorte, freta um ônibus para o velório.
Os mortos de Cíntia raramente fazem parte da gente graúda da "Colombo italiana". Muitos dos seus são indigentes. Outros são jovens, laranjas e operários do tráfico que habitam a Colombo das rebarbas do Alto Maracanã. Emoção? "Ver os pais com um pãozinho na sacola: levam ao IML, na esperança de que o filho não esteja morto. Ai..."
As situações que enfrenta são de ajoelhar e rezar. Já tirou criancinha de ferragens e lhe vestiu um tip-top; deu o primeiro abraço emocionado em um menino que ficou órfão de pai e mãe; acalmou irmão de bandido jurando vingança.
Vez ou outra, a depender do tamanho estrago, recorre aos velhos clichês: "Tava na hora dele". Noutras, transforma desgraceira em mutirão. Põe a Lourdes atrás de flor, o Sebastião atrás de vela. Dá sempre certo. Quando vai ver, tem 15, lencinho na mão, ouvindo o que ela diz. Sente-se a própria pomba da paz.
Se a sortista lhe contasse que levaria altos papos com os coveiros, morreria de rir. Menina de fino-trato, criou-se nas divisas do Centro com o Batel. Curtiu as patotas de esquina, Bob Dylan e antes mesmo de a festa acabar, decidiu ser atriz. Conseguiu. Tirou registro profissional interpretando Hamlet, de Shakespeare.
Tem no currículo um papel na novela Sonho Meu, uma ponta em Torre de Babel, ambas da Rede Globo, uma participação no seriado Pista Dupla, da CNT, além de 18 comerciais para televisão. Vez em quando ainda lhe chamam para algum trabalho. Mas o toque do celular é a voz de Deus. "Tem semana que não morre ninguém. De repente são cinco num tapa..."
Ela bem que tenta relaxar. Mas necas de sossego para Dona Social como ficou conhecida. Se os amigos de algum dos quatro filhos vão em casa, só lhe pedem histórias de funeral. Se vai aos bailões do Fascinação, o "desmanche", não tarda a ser anunciada no microfone. "Pessoal, chegou a moça dos óbitos. Não durmam". Nas galerias do Shopping Colombo onde funciona uma subsede da prefeitura Cíntia não dá dois passos sem que uma alma se materialize na sua frente.
"O Jota Camargo [prefeito de Colombo] me chamou para esse trabalho porque ele sabe que eu gosto da vida. E que não gosto muito de dormir", informa, sem nem tchum para o tal do paradoxo vida e morte. Quero saber das suas razões. Ela pigarreia e admite que no socorro aos mortos encontrou o melhor de seus papéis. "Só assim para suportar."
Na lida com os que se vão, afinal, interpreta Shakespeare sem precisar decorar as falas. "Sou boa é de improviso..." Na maioria das vezes, é verdade, não cabe a comédia sua especialidade. Mas bem já conseguiu fazer com que alguns não se rendessem à tirania dos dias ruins. Os que ficam lhe agradecessem: enchem sua sala de presentinhos de R$ 1,99. Quanto aos mortos, promete, vai fazer festa no céu. Não desdenhem.
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