“Mas o lixo tá todo na rua...”, argumentou uma voz cheia de agudos, vinda do fundo da sala, pondo por terra as excelsas teses da professora sobre reciclagem e coisa e tal. Pois é. Precisou um minuto de silêncio para engolir a saliva e levar ao fogo uma ideia que lhe passou pela cabeça. Depois foi só alegria: deu-se início ali a uma daquelas pequenas histórias que valem um 2015 inteiro. A ela.
Nilcélia Gonçalves Rosa, 34 anos, leciona para crianças do segundo ano do básico, em Almirante Tamandaré, na Região Metropolitana de Curitiba. Sua escola – a Eurípides de Siqueira – fica no Jardim Planalto, bairro Paraíso, e não faz jus a nenhum dos dois nomes. É uma Minas Gerais, de tanto morro. As ruas têm inclinações de 30%, são ótimas para as panturrilhas, e só. Quanto à alusão ao paraíso, há controvérsias.
O Jardim Planalto fica a 15, 20 minutos do Centro de Almirante, mas para chegar lá é preciso atravessar a Rodovia dos Minérios, uma via bonita, mas de poucos amigos e muitos amantes apressados. A vila é rincão sob medida para adoradores da natureza bruta – lá ainda se usa orelhão e não é difícil trombar num cemitério de automóveis. O ar é puro – exceto pelas fogueiras acesas nos quintais. Não tem asfalto, muito menos calçada, características que se tornam mais marcantes em dias de chuva. Se pudessem, suspeito que as pessoas comuns – a maioria –, por uma questão de ordem, fariam algumas adaptações na geografia e na infraestrutura do Planalto.
A surpresa foi descobrir que a criançada – só na “Eurípides” são 417 pimpolhos com energia de Biotônico Fontoura – também tinha suas reclamações, ainda não recolhidas pela ouvidoria municipal. E bem eles, que pareciam tão tchutchucos, pulando corda com a destreza de quem treina salto em poças de água. A coleta do lixo era uma das lamúrias dos infantes, ao lado do pedido de gourmetização no sagu da merenda. Em resumo: o caminhão da prefeitura só chegava até uma parte da vila – na boca da subida, não mais. Medo de não conseguir voltar do Recanto dos Papagaios, um Himalaia mais acima. Convenhamos: a gente estica o pescoço, olha, e se benze.
“A molecada deu de ficar interessada”, avisa a dupla do jaleco branco
O fato é que a professora podia ter encerrado a conversa ali e passado para o próximo ponto – quem sabe uma rodada de tabuada, a do oito. Mas os deuses têm seus caprichos e sopram nas orelhas sem pedir licença. Aconteceu. Nilcélia decidiu manter várias bolas no ar ao mesmo tempo, chamou a colega de ofício Ruth Zocatelli e juntas começaram um barulho que não deixou a “Eurípides” descansar nos meses que se seguiram àquele abril. A escolinha modesta, de um azul desbotado e linhas tão sóbrias que chega a parecer uma igreja evangélica, saiu da concha, subiu as ladeiras. Com faixas de protesto.
Por partes. Teve a aula sobre o lixo. O menino que falou do lixo. Uma nova aula sobre o lixo – com implantação de um painel explicativo sobre a reciclagem. E uma bendita carta ao secretário municipal de Meio Ambiente, assinada por uma centena de guris e gurias que ainda aprendem a colocar a perninha no “a”. Assunto: o caminhão do lixo que não chega, que não sobe, o diacho.
Para surpresa da nação, a autoridade não só respondeu à carta como três dias depois da postagem uma dessas Scanias que trituram até criptonita estacionou na frente. Talvez a piazada não soubesse ainda o significado da palavra “descaso”, comum nas nossas rotinas, mas naquele momento descobriu o sentido da palavra “cuidado”. Empoderaram-se. Depois, subiram as ruelas pedindo aos próprios pais, parentes e vizinhos que fizessem uma faxina nos quintais. Só não bateram panelas – fica para a próxima.
“Olhe ali a sandália da tua irmã jogada no meio do mato”, esbravejou um púbere, na caminhada pelas ruelas de pó, pedindo ao povo que não atirasse o lixo da porta para fora, como se faz com gatos vadios. As fotos que Nilcélia e Ruth tiraram da manifestação são de colocar de papel de parede no computador. Me permitam um pouco de poesia barata – os verdes das matas de Almirante contrastam com as camisetas amarelo-ouro dos alunos. Não foi um dia qualquer. Melhor dois, pois a dose foi repetida, com o apoio de “mães madrinhas” do projeto – outra das invenções das professoras. Enquanto isso, em Brasília...
O que mudou? “A molecada deu de ficar interessada”, avisa a dupla do jaleco branco. Se foi lindo? Os olhos marejados de Nilcélia, Ruth, da diretora Dulce Vieira, da tia da cantina, da moça da secretaria se encarregam de responder. Aliás, continua sendo. Como o caminhão do lixo não sobe a ladeira nem a pau – problema de agenda e de mecânica –, todas as quintas-feiras a turma do morro desce e deixa latas, PETs, vidros, isopores, jornais no pátio da escola, tudo limpo e separado para que seja recolhido. Não se sabe de outra escola que tenha virado um centro de reciclagem – o que bem poderia render um colchete nos relatórios da COP/MOP de Paris.
Parece coisa de fábula, mas a cada dia tem mais artesão de lixo nas cercanias do Paraíso, o de Almirante Tamandaré. Fala-se em criar uma cooperativa. É verdade que a escola carece de uma demão de tinta, mas os potinhos de plásticos, cheios de flores, aqui e ali, é que sequestram a nossa atenção. Quando você passar pela Rodovia dos Minérios, não esqueça – atrás do morro tem uma escola que faz justiça a seu nome. Se preferir ir de ônibus, pegue o “Curitiba-Jd. Paraíso”. Chega lá.
PS: O projeto Lixo separado, bairro bem cuidado, de Nilcélia e Ruth, esteve entre os dez finalistas do Concurso Cultural Ler e Pensar, do Instituto GRPCom. A matéria de jornal que mexeu com os brios dos alunos da “Eurípides” foi “Como gerenciar corretamente o lixo que você produz”, da jornalista Caroline Olinda, publicada na Gazeta do Povo em 9 de abril de 2015. Carol ajudou a dar um trato no Paraíso, essa menina.