Há dois anos, uma mulher de nome Maria surgiu no caminho do criador, livre-pensador e ciclista Newton Goto. Foi durante uma dessas intervenções de arte no movimentadíssimo Terminal do Pinheirinho 130 mil pessoas por dia, aquele sufoco.
Goto e sua trupe ativistas feito ele mostravam um grande mapa da cidade para o povão, desafiando a fúria de passageiros com sebo nas canelas. Coisas de artista, diriam. Pois a Maria se aproximou, olhou-olhou, e não encontrou a vila onde morava, atrás da Ceasa, no Tatuquara. Como é que podia? Sem querer, a "sem-cartografia" rebatizou o lugar. Disse que era o "Pequeno Espaço". Soava bem. Assim ficou.
Tempos depois, Cláudia Washington, Lúcio de Araújo e Goto se mandaram para lá e se puseram a recolher as histórias dos 266 moradores de 78 habitações do lugarejo, desenhando com a ajuda deles a planta que não existe nos anais. Tudo à mão-livre e com lápis colorido. Foi quando se deram conta de que o local era uma Pequena República das Alagoas em terras paranaenses.
Nada menos do que 31,9% dos moradores vieram das vidas secas no cálido estado de Graciliano Ramos para a gélida nação do Vampiro e de avião, que os tempos são outros. De acordo com o que ouvi, vão muito bem agasalhados, obrigado. Problemas, apenas os gastronômicos carestia de carne de sol e os linguísticos. "Fidaigo virou tilápia; jundiá virou bagre; macacheira diz mandioca; angu ceis chamam de polenta. Que é isso? Fiquei rodado. Isso é outro país", se alvoroça José Francisco Xavier.
A migração não guarda segredos. Há 15 anos vieram José mais Antônio, que tinham irmãos e primos, que vieram também e mais um e mais outro, até somar 70 e poucos alagoanos. Somados a pernambucanos, cariocas e nortistas "os de fora" somam 44,4% da vila, uma ocupação digna de figurar nos registros da ONU.
Falei com Márcio Salustiano, com Sueli e filhos, com José Febrônio, Jeanisete mais o menino, e com quem não disse nome. Telefonei para Roberto Nílson Cassiano Júnior, que se formou em Matemática, já deu adeus ao Pequeno Espaço e que nasceu "mesmo" foi na Paraíba. O papo com eles é dos bons e que ironia à moda curitibana: começa sempre pelo frio.
Um conta que aterrissou em pleno inverno claro. Gelado como um cadáver e já vendo Nossa Senhora dos Prazeres lhe acenando a eternidade, seguiu a orientação dos sobreviventes: pôs duas calças, duas meias, todas as blusas e se trancou dentro do puxado. Até o dia em que o despertador acusou 3 horas da madruga, hora em que 90% da República das Alagoas sai da cama para ganhar seu pão na Ceasa.
Meio de tarde, a caravana volta, para nas esquinas, proseia e proseia tanto que os vizinhos curitibanos 23,61% segundo o levantamento do Goto espiam pela vidraça achando que teve despejo. "Que tanto falam", sussurra uma. "São animados, né", desdenha outra, desconhecendo uma das mais sólidas instituições nordestinas: a conversa fiada, santo remédio para o fígado e rins.
No mais, tem forró e as peladas de domingo. É o Clube de Regatas Brasil (CRB) contra o Centro Sportivo Alagoano (CSA), covers dos times de lá. O estádio fica no campinho da frente. Depois, é morgar. Os "alagas" não são de passear. Sueli nunca passou do Pinheirinho. Márcio se contenta com o Palladium. Jeanisete dá um pulo no Lago Azul. José e Josefa, ambos de Taquarana, 18 mil habitantes, acham que têm muito a visitar ali mesmo no Tatuquara, 47 mil moradores.
Mas que não se cometa injustiça. Esses festeiros gastam horas limpando casa e asseando os meninos, todos de cabelo cortado e roupa tinindo. Chama atenção: a favela está em área privada e embaixo das linhas da Eletrosul o que é proibido. Para que a vila não avançasse, as autoridades ergueram atrás dela um Muro de Berlim. Fina, comprida, cortada por becos, pelo menos na zona alagoana não se vê papel de bala no chão.
Não perguntei por quê tanto brinco mas tenho para mim que é por estima de ganhar melhor. E pela fartura das sobras da Ceasa. Lá, dizem, tinha mês que não pingava duzentão. Aqui, tem quem ganhe R$ 900 e compre terreno no Santa Rita. "Precisa de uns 30 ônibus para arrancar a gente desse lugar", riem-se.
Quanto à Maria a que levou os artistas até lá ninguém sabe, ninguém viu. Não era alagoana, "visse". Mistérios de Curitiba.