Existe uma loja na cidade onde a freguesia estica a cabeça na porta e pergunta: "É para vender ou só pra olhar?" Depois entra acanhada como se estivesse prestes a pisar no Museu do Louvre. Só lhe falta limpar os sapatos, pedir desculpas pelo incômodo e deixar uma cesta de abacates. É o que manda a educação, afinal a Alfaiataria Riachuelo merece respeito está no mesmo lugar e quase do mesmo jeito há exatos 80 anos, sem planos de se aposentar.
É de fato uma velha senhora. Nas décadas em que os donos levantaram com as galinhas para abrir a casa especializada em trajes militares viram nada menos do que 17 presidentes governarem o país. As saias encurtaram até perder o juízo. Bondes foram atropelados pelo Expresso. Os prédios arranharam tanto o céu que a alfaiataria, tadinha, foi ficando tão miúda que muitos a juraram sumida do mapa.
Quando a descobrem vivinha da silva, antigos clientes se põem em roupa de missa e partem rumo à Rua Riachuelo, 266, para tascar um abraço no passado. Com sorte, pensam, encontrarão os donos, Guilherme & Osvaldo Matter, e comprarão uma capa de chuva, pois em Curitiba nunca se sabe. Bem, os irmãos já se foram, mas o ritual de visitação se repete, irresistível como um suspiro. É entrar e enlear as memórias em casacas verdes bandeira, insígnias prateadas e hinos da caserna.
Os que chegam logo se dão conta de que o estabelecimento está como dantes, exceto na clientela, hoje tão sortida quanto um pote de jujubas. Imagino o dia em que um sargento e uma guria blindada a piercings pediram juntos ao balcão, no mesmo tom de voz, "um coturno, por favor". Tem também a turma do teatro, fashionistas, seguranças carecas, os curiosos das manhãs de sábado: "Olha filho, assim era o mundo antigamente..."
Se olharem bem, os visitantes vão notar na parede um retrato do general Heitor Borges de Oliveira, espécie de santo padroeiro da Alfaiataria Riachuelo. Nos idos de 1930, em Ponta Grossa, o manda-chuva encomendou do alfaiate G. Matter uma farda. Gostou tanto que o trouxe para Curitiba. Virou febre todos os homens do Exército queriam se vestir com ele, que era artista e costurava por ofício, para poder fazer o que mais lhe aprazia pintar telas ao ar livre e pilotar motocicletas, arrancando poeira daquele Paraná em pinheiros.
Era homem de espírito solar numa cidade polar, que via boquiaberta o alfaiate e sua mulher ora a bordo das motos, ora em convescotes com a nata da pintura local De Bona, Viaro, Arthur Nísio... Enquanto isso, a alfaitaria lá, tal e qual, sob comando dos filhos Guilherme e Osvaldo, ambos de hábitos severos, o que garantiu à lojinha chegar ao século 21 sem plásticas, apesar dos cupins lhe subindo pelos calcanhares.
Nem tudo foram rosas. Na Segunda Guerra a alfaiataria teve de ser fechada algumas vezes para escapar à fúria dos populares e suas pedras na mão: G. Matter era alemão. Sua mulher, talvez judia. Mais recentemente, os atentados à loja ficam na conta das criaturas da noite que fazem da Rua Riachuelo um campo minado onde os intestinos cospem fogo. O n.º 266 nem sempre é poupado.
As profanações são justiçadas com água e sabão. Depois, à rotina de quase um século. Ergue-se a porta deixando à mostra o letreiro art déco: "Alfaiataria Riachuelo. Civil e militar". A frase está ali há 29,2 mil dias. Neste tempo, presenciou o entra e sai furtivo no Hotel Palácio, contou as horas no relógio da Raeder, fez vista grossa aos pecados do Graxaim.
Mas chega de saudade: a alfaiataria ainda tem a Hilú e a Edith como boas vizinhas. Sua máquina de costura Pfaff 1931 pede óleo, mas bem que funciona. A turma do Jokers lhe ajuda a esquecer a idade. E diferente das lojas que o vento levou, tem quem a queira. O filho de Osvaldo Matter, Osvaldo Filho, entendeu que era seu destino manter funcionando a "cápsula do tempo" da Riachuelo. Assim tem sido.
Ele acha bonito os velhinhos olharem pasmos para o mesmo chão onde pisaram com os coturnos da mocidade. Passar a mão nas prateleiras escuras. Puxar pelas narinas os cheiros de outrora, que só não são os mesmos por culpa das frituras do restaurante do Lee, ali perto. Será?
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