No ano em que o grupo de rock A Chave se dissolveu – 1979 –, o fotógrafo português Orlando Azevedo perdeu a graça. O baterista, letrista e ideólogo do grupo passou a zanzar pela cidade, “sentado à beira do caminho”. A fossa só não foi pior porque quis o destino que um Azevedo em vias de virar andarilho puxasse conversa com um tipo curioso – desses que Curitiba produz com selo de qualidade. Usava suspensórios rotos, garantidos com sobras de elástico, tinha cara de poucos amigos, discurso telegráfico e sua mulher, uma sombra a lhe seguir, causava impressão com os óculos fundo de garrafa. O nome – Alberto Weiss, herdeiro da Foto Progresso. Foi do além.
Weiss morava num sobrado avariado, perto do Correio Novo. Não permitia que o jovem de longos caracóis – a cujo assédio cedeu por nocaute – passasse da soleira da porta. O olho do portuga, contudo, enxergava os cômodos pilhados de cacarecos que Alberto recolhia na rua, o que fazia dele um intruso em meio aos então chamados de “caçadores de monturos” – versão paleolítica dos catadores de latinhas. Falavam-se amiúde, protagonistas de uma crônica de amizade – um no fim da vida, outro amuado, começando tudo de novo.
Em 1989 – dez anos depois de conhecer Weiss –, a intuição o levou à Rua São Francisco. Alberto tinha morrido como queria, sem barulho. A Foto Progresso virou Foto Sakamoto, dedicada à banalidade dos retratos 3x4. Da esquina, viu o próprio Sakamoto deitar no lixo o cenário usado para as fotos de primeira comunhão – ritual que costumavam congestionar a Rua São Francisco. Catou e levou consigo. Tempos depois, voltou e pediu para comprar as sobras da Progresso. Sentia-se o último amigo de Weiss. Saiu de lá com 3,5 mil chapas de vidro, a bisavó dos negativos. Somado, o acervo pesa duas toneladas.
Ir até a Progresso era um evento. Receber seus donos também
Nas três décadas que se seguiram, Orlando firmou seu nome no mundo da fotografia. Produziu a assombrosa cifra de 170 mil fotos analógicas, boa parte resultado de andanças. Dessa vez, não para curar a dor de cotovelo pelo fim de A Chave, mas para conhecer o Brasil Profundo, por onde se aventura repetidas vezes, como se tivesse encarnado de uma vez só Nicolas-Antoine Taunay e o coronel Fawcett.
Paralelo ao trabalho autoral, atirou-se à curadoria (ou comissariado, como prefere). Assinou as Bienais da Fotografia de Curitiba e pode se dar ao luxo de telefonar, sem pedir penico a assessores, para gigantes como Frans Krajcberg, Miguel Rio Branco, Claudia Andujar, Flor Garduño e, claro, para o Sebastião Salgado. É uma estrela na sua pista , daí ser seguido por lupa, o que amplia suas qualidades e superfatura seus defeitos. São lendárias a generosidade e o talento de boxeur para uma boa briga. “Eu quero sair de Curitiba, esse cemitério de talentos”, esbraveja a falas tantas. Poucos são páreo para ele, que são muitos Orlandos, aliás. Há pouco, assumiu os heterônimos Yuri Andropov e Jacob Bensabat, esse em alusão a seu trisavô, um judeu marroquino, cuja menção era quase proibida na casa dos Azevedo. “Fernando Pessoa era genial, eu sou genioso”, gargalha.
[A curiosidade é que, quando puto, os palavrões, que discorre em escala industrial, são os únicos termos que não diz com seu indefectível sotaque lusitano. Xingamento pesado, só em português do Brasil. De resto, peçam-lhe para dizer, sei lá, “Baudelaire”. É uma música.]
O que pouca gente sabe é que longe dos holofotes do circuito da fotografia, Orlando Azevedo fez envelope por envelope para cada chapa de vidro dos Weiss – o pai Augusto e o filho Alberto. Cavoucou informações sobre os dois, sem sucesso. Passou noites diante das imagens, na tentativa de descobrir – pelas roupas e pela mobília – em que ano do século 20 foram tiradas. Não há datas, carimbos, nem créditos.
A amizade iniciada em 1979 dura 13,5 mil dias. Faz pouco, entendeu que fez o que podia pelo acervo – inclusive as devidas faxinas, sem abrasivos, com paciência de Jó. A longa história do baterista de A Chave com o fotógrafo alemão precisa de um desfecho. O assunto lhe deixa nos nervos e nos cascos. Quem vai ficar com Weiss? É o que se pergunta.
A Foto Progresso ficava na Rua São Francisco, onde hoje está o Jokers Pub Café, que dispensa apresentações. Os Weiss faziam mimosas fotos de estúdio – em que crianças louras sorriem num cavalinho de madeira e senhoras honradas aparecem sentadas, cobertas de babados e cabeleiras tão fartas que, hoje, fariam fortuna se os vendessem nos salões do Terminal Guadalupe. Os retoques deixavam todo mundo com cara de herdeiro de alguma coroa europeia. Ir até a Progresso era um evento. Receber seus donos também.
Alberto e seu pai retratavam famílias inteiras, em poses aristocráticas, à frente das casas grandes que construíam no Batel, no São Francisco, nas Mercês. As chapas eram uma espécie de atestado de que aqueles homens e mulheres venceram, depois de terem provado dos engulhos da imigração. Não raro, os capitalistas os convidavam para ir às roças, documentar as clareiras abertas nas matas de pinheiros-do-Paraná. Dói pra diabo. Há indícios, do mesmo modo, de que os Weiss tenham sido pioneiros na foto publicitária – imprimindo o relevo de sua marca em propagandas da Pianos Essenfelder e Cristaleira Aurora.
O vento mudou de rumo em 1942, quando populares depredaram a Foto Progresso, num dos surtos de germanofobia durante a Segunda Grande Guerra. O assunto é tabu. Como disse certa feita o ambientalista Henrique Schmidlin, o Vitamina, a perseguição aos alemães “cortou o barato” da comunidade – em especial aquela parcela que não estava nem aí para as piras do arianismo. Era uma moçada e andava ocupada da próxima expedição ao Pico do Marumbi ou em se inscrever para as competições domingueiras de bicicleta em volta da Praça Rui Barbosa.
Depois daqueles dias cinzas, muitos clãs alemães sepultaram suas memórias em baús de sótão e se reservaram o direito de calar. Parece ser o caso de Alberto Weiss. Podia não ter o talento vulcânico e a perícia de um Arthur Wischral, mas num mundo perfeito teria uma sala de museu. Antes disso, parecia destinado a um lugar na despensa da história. Os arquivos de Orlando Azevedo impediram que assim fosse. Agora gritam para serem abertos. Já são horas.
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