A pilha de jornais sobre a mesa não deixa mentir – ali mora uma leitora. Ela se chama Sara Furquim, tem 96 anos e não perde um capítulo... da Lava Jato. Inclusive pela internet, se preciso for. Não se fiúza em computadores, mas dia desses deixou recado à sobrinha Ezilda Furquim Bezerra, sua fiel escudeira: que mandasse um e-mail ao Ricardo Boechat, dando opinião sobre uma notícia qualquer. A parenta obedeceu; afinal, trata-se de Sara, “a professora”, a quem qualquer um tem ganas de se desdobrar em favores. Diante desse nome, joelhos se dobram, sorrisos se abrem e chapéus são retirados da cabeça em toda a pequena Rio Branco do Sul, na Região Metropolitana de Curitiba.
Sara é um patrimônio municipal: professora pioneira, primeira vereadora local, fundadora do primeiro jardim de infância e da primeira biblioteca pública, isso para ser breve. São muitos os feitos dessa desbravadora intrépida, dona de admirável senso prático. Quando na Câmara, criou o ponto de ônibus coberto. Quem pega o busão sabe o que isso significa. Por essas e outras, não há desfile, quermesse ou efeméride rio-branquense para o qual não seja convidada, com honras de chefe de Estado. Vai à maioria, sem reclamar de dor nas juntas. Está tudo bem, avisa aos que lhe oferecem o braço – “só não funcionam o ouvido direito e o joelho esquerdo. De resto...” Causa inveja.
Não fazemos a mínima de onde foram parar nossos mestres dos primeiros anos, justo aqueles que nos ensinaram o que de fato importa, ler e escrever
A prova de que quase um século não lhe pesa é que ainda costuma dar aulas particulares aos que lhe pedem, para não perder a mão, treinada em 40 e cacos anos de magistério. Não cobra tostão. É boa no português, mas não lhe dá preguiça tomar a tabuada – o povo apanha. Fechando o pacote, continua a escrever trovas. Ultrapassa a soma de centena, algumas repetidas de cor. Só na semana passada, escreveu meia dúzia de versos – um deles com loas ao ex-governador Roberto Requião, “por respeitar aqueles que ensinam”. Bombas de gás me ceguem – nada como uma crítica elegante.
Sara Furquim nasceu em 1918 – e se criou na época em que moças ricas aprendiam umas poucas letras e uns tantos bordados. Estava programada para o altar, mas sua mãe, Josephina, a sonhava professora. O próprio nome, Sara, foi escolhido por imaginar que as crianças teriam facilidade de guardá-lo. Assim se deu. Aluna do Instituto de Educação, teve aulas com Erasmo Pilotto, Anette Macedo e Helena Kolody, de quem se tornou chapa. Um exemplar autografado de Tempo, editado em 1970, figura entre os tesouros dos Furquim. Sara é a Helena de Rio Branco.
Os pupilos de Sara Furquim a reverenciam, em desacordo com a teoria conspiratória de que professores habitam o rodapé e o chulé da história. As cartas que recebeu em décadas a perder de vista o comprovam. Uma delas comove em particular. Ao ganhar um prêmio internacional, o cartógrafo José Bittencourt Andrade usou dos Correios para lhe dizer que, de tudo, o mais importante foi ter lido Caçadas de Pedrinho, de Monteiro Lobato, por indicação da professorinha. Ali sua vida começou. Bacana.
Uma das situações mais esquizofrênicas do nosso tempo é que não fazemos a mínima de onde foram parar nossos mestres dos primeiros anos, justo aqueles que nos ensinaram o que de fato importa, ler e escrever. Os ex-alunos de Sara não padecem desse vazio. Sabem onde achá-la – no casarão da Travessa Furquim, 54. Do portãozinho para dentro, não dá para saber que dia é hoje e em que ano estamos. Nem xarope Melagrião dá barato igual. Sara me fez pensar onde andarão as “tias” Diana, Edil e Marina, sem as quais não traçaria essas linhas. E você, de quem lembra?
O casarão dos Furquim soma 87 anos e 250 metros quadrados. Está plantado num ponto estratégico de Rio Branco do Sul – ao lado da placa de boas-vindas à cidade e atrás do pontilhão da linha de trem, marco industrial da meca do calcário. Impossível não vê-lo – todo em madeira, rodeado de janelas altas como o quê, sótão, varanda e paisagem de pinheiros ao fundo. Por tempos funcionou como hospedaria de viajantes.
Sara e o casarão são um corpo só. Tudo ali lhe diz respeito – o relógio de parede com os ponteiros parados em 2h30. A escada que leva aos quartos no forro, o poço revestido de pedra; o pátio onde um dia funcionou uma escola criada pelo patriarca Octávio Furquim, seu pai. Ponha na conta todos as moradas míticas da literatura e do cinema: a mansão de Tara, de E o vento levou; a Casa dos Espíritos, de Isabel Allende; O casarão (1976), a novela de Lauro Cezar Muniz. Tem a ver: narrativas dormitam naquelas paredes que gemem.
Uma das mais incríveis histórias gravadas ali é a de Maria da Luz Furquim, irmã de Sara. Ela é a moça do retrato sépia que impera na parede. Estava noiva quando os médicos descobriram que sofria de nefrite crônica, doença que esfacela os rins. Tinha um trato com o namorado Edgar Jankowski – iriam se casar quando ele se formasse em Medicina. Ao saber que não haveria cura, o moço reprovava, ano a ano, de modo a poupá-la da verdade. Morreu aos 32 anos. A noiva eterna dá nome a uma escola vizinha, mas é no casarão que seu enredo, digno de romance de sensação dos anos 1910, continua sendo contado.
Sara não se casou. Dispensou o pretendente, que queria levá-la para Paranaguá. Não havia como. Era ela quem vestia a petizada de guarda-pó branco para brilhar nas paradas. Que se abalava 29 quilômetros implorar livros às secretarias de governo. Além do mais, havia o casarão. Os quadros de formatura – sempre com ela homenageada – seguiram lotando as cômodas da sala. É como se os formandos se mudassem para lá, ao fim de cada ano letivo. Um bocado de Rio Branco do Sul mora na travessa, ao lado de Sara – a professora. Bonito.
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