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José Carlos Fernandes

O cordel do Elival de Jaguaquara

 | Foto: Educador Valdecir. Arte: Felipe Lima
(Foto: Foto: Educador Valdecir. Arte: Felipe Lima)

Quarta-feira passada fui a um evento da­­queles. Aconteceu no Capão da Imbuia, Rua Pastor Manoel Vergílio de Souza, 1.310, onde funciona o Centro de Socioeducação Curitiba (Cense). Para quem não manja do assunto, o local é uma unidade de triagem para adolescentes envolvidos com drogas e violência. Não é um PlayCenter. Mas tem montanha-russa.

Uma das glórias da vida de repórter é conseguir entrevistar um menino em conflito com a lei. A gente mal acre­­dita no que escuta e sai da tarefa, assim, com ganas de virar o mundo de canelas para o ar, como nos tempos em que usava uma camiseta com estampa do Che Gue­­vara. Mas garantir uma conversa dessas é missão para Caco Barcellos.

Com base numa leitura espartana do Estatuto da Criança e do Adolescente, e por culpa das pisadas na bola dadas pela imprensa sanguinolenta, promotores, juízes e educadores tendem a bater a grade na cara da imprensa, im­­pedindo chegar perto. É de se benzer três vezes.

Dessa vez, contudo, não aproveitei a porta da unidade aberta para sa­­ber da "guerra dos meninos" ou coisa que valha. Fui até lá para conhecer Elival do Cou­­to Souza, 48 anos, baiano de Jagua­­quara, professor que fez da literatura o assunto da hora para os 110 garotos e garotas que transitam pelo centro.

O Eli, como o chamam, é um daqueles caras de quem nos tornamos amigos no primeiro aperto de mão. Dele sei quase nada. Mas o bastante para arriscar que um dos segredos do cabra é a rapidez com que enreda o povo na sua fala regada a cacau. O homem é um misto de Castro Alves, Patativa do Assaré e sobrevivente de Canudos. O res­­to é rima pobre. Às falas.

Quando um adolescente comete ato infracional grave – categoria que pode incluir de roubo de bicicleta a latrocínio –, ganha passaporte para o centro de triagem. Ali, ninguém es­­quenta cama: a estadia não pode ul­­trapassar 45 dias. Cumprido o tem­­po, o hóspede vai para outro ed­­ucandário ou é encaminhado a um programa de semiliberdade, cuja definição dispensa explicações.

Este ano, cerca de 4,8 mil garotos e garotas passaram por esse processo no Paraná. É de lei. Mas eu arriscaria dizer que mesmo apreendidos e cuidados, os internos não dão confiança fácil a ninguém. Quanto mais em 45 dias. Pudera: eles provaram a dor do abandono antes mesmo de terem barba na cara. Quem chega perto é testado até o caroço.

Pelo visto a regra não vale para o Eli. Em poucos dias, o viajante de Jaguaquara não só dribla os ressabiados como lhes dispara o coração. Lembra o imigrante polonês da belíssima peça Novas diretrizes em tempo de paz, de Bosco Brasil. Detido na alfândega, em plena era Vargas, tem poucos minutos para fazer um autoritário fiscal da al­­fândega chorar. Se não conseguir, será deportado. Ele consegue.

A arma do professor para assoprar feridas em um mês e meio é a palavra. Em 2009, "soprou" literatura de cordel. Tinha para si que a arte dos repentistas animaria a turma a contar a própria história. Deu tão certo que o cordel virou um livro, Minha trajetória, lançado esta semana – o tal evento daqueles.

Foi solene. Os 110 do Cense Cu­­ri­­tiba assistiram a tudo, de camiseta branca, banho tomado e cabeleira curta. Não fossem as tatuagens nos braços, diria que eram membros de um sínodo de coroinhas. Não são. São agora personagens da cultura popular, tanto quanto o Zé Baiano e Dona Mari­­quinha. Poesia tem dessas coisas.

Em tempo. Os 57 autores de Minha trajetória não estavam lá. Foram-se com os 45 dias e viraram uma sigla na última página: "WAS", "WCF", "GHLM"... Do grupo, restou apenas "A". Pelas tantas, o menino levantou, tomou a palavra e lascou a fala que deveria figurar num outdoor de avenida: "A literatura me dá coragem".

Finda a cerimônia. "A" segue em fila com os outros, a mão para trás, a camiseta sem dizeres, tristinha. Resta a mim lhe desejar dias felizes, quem quer que ele seja.

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