Num dos momentos mais inspirados de um livro eterno – A invenção do cotidiano –, o historiador francês Michel de Certeau sugere que num mundo que se esfarelou, como o nosso, tem sempre alguém catando os pedaços. Que alívio. Nesse exato momento, um homem pinta um móvel de vermelho, uma mulher oferece amizade a um estranho, um jovem cai na estrada, uma cozinheira faz alquimia. Rebelião dos sentidos – todos eles, e pronto. Como que por encanto, a ferida aberta acha uma cura.
Poesia? Em se tratando da curitibana Cristiana Prante, 28 anos, muitos viram seu momento “certeauniano” como coisa de doida varrida. “Virei florista”, avisou, para espanto geral, a guria formada em Design, pós-graduada em Marketing, ao voltar de um curso de Arte Floral, feito na meca das flores do Brasil: Holambra (SP). A quem interessar possa, está empregada – negócio próprio –, de posse de juízo e necessitada de uma ginástica laboral. “Dá uma trabalheira. Tô com dor nas costas.”
Plantas mexem com as memórias. São alucinógenas
Seu posto de atuação é um Fusca 1970, verde quartel, categoria “joinha”. Na porta do carro mandou escrever “Florista Viajante”. Depois saiu por aí, para entregar arranjos que faz. São montados com arte e circunstância. Cris tem mão boa para arrumar um vaso, diriam. O nome certo é “assinatura floral”. Se precisa de uma folha diferente – jiboia, costela-de-adão – para ornamentar, não se acanha: bate palmas no portão de alguma casa do sempre verde Pilarzinho, onde mora. Pede o favor e estende o podão – simples assim. Não raro, ganha também um papo sobre como fazer muda de rosas ou relatórios a respeito do temperamento amuado das avencas. Falam das virtudes da terra com minhocas, dos malefícios do vento encanado.
Cristiana descobriu as plantas – e, como Deus no Velho Testamento, viu que era bom. De quebra, entendeu que as pessoas se tornam mais bacanas quando tratam de jardins do que quando assuntam, sei lá, sobre a Dilma, refugiados, ou do medo tolo que sentem dos adolescentes que usam boné para trás. Tempos estranhos, mas apesar de tudo tem quem se entregue à paixão instantânea provocada pela visão do Fusca Verde da Florista Viajante, liberando as melhores endorfinas da felicidade. Selfies no Fuque. Somos todos a Mrs. Dalloway de Virginia Woolf.
A florista viajante se pergunta como diabos tudo começou. Talvez seja culpa do Projeto Rondon. Foi graças a esse intercâmbio que, décadas atrás, seu pai – um estudante de Medicina – conheceu Núria, nascida na Amazônia, à margem do Rio Purus. Casaram-se. Cristiana, a filha, cresceu vendo a mãe reeditar uma floresta tropical nos quintais de uma fria Curitiba. Pode também ser culpa do bisavô paterno – que participou do paisagismo do Passeio Público. Mas a hipótese mais provável é que seja culpa dos argentinos.
Faz uns anos, a designer se mudou para Buenos Aires – passar uns tempos, o que deveria ser um direito garantido pela ONU. Encantou-se com o costume portenho de comprar flores na rua pelo simples prazer de vê-las frescas na mesa da sala. Perguntou-se por que não no Brasil. Tinha conhecimentos aprendidos com a mãe. Estudou mais um bocado. Depois foi só tirar o Fusca da garagem. Fez-se florista profissional.
É bom vê-la falar de ruscus, alstroemeria, cúrcumas e sementes de ligustro. Descobrimos que dálias, girassóis e bocas-de-leão têm seus temperamentos, a respeitar. Mais: plantas mexem com as memórias. São alucinógenas. Portugueses se entregam aos fados diante de um espírito-santo. Como no filme Flores partidas – aquele em que Bill Murray sai à caça de suas antigas namoradas –, há quem seja tomado de fossa diante de um botão qualquer. “Não, não, Cristiana, essa flor não me traz boas recordações”, escuta volta e meia de algum freguês sentimental. Lágrimas secadas, põe-se a ouvir fragmentos de um discurso amoroso, desengavetados pela força revolucionária de um cravo, pelo abrir de uma buganvília em penca.
Flores, creiam, fornecem matéria-prima para romances, inspiram chansons e boleros[La vie en rose? Dos Gardenias?], toadas e até sertanejos universitários. Igualmente, fazem rir. “É de verdade?”, perguntam os distraídos diante de um ramalhete obscenamente selvagem e sexy – especialidade do catálogo da moça. “Pena que murcha, né”, dizem os que se recusam às flores de corte. Murcha, sim – é da vida.
Caso o cliente mude de ideia, Cristiana tem um decálogo para manter as flores mais vivazes do que se estivessem nos canteiros. É preciso gastar um cadinho de tempo com aparos nos caules e trocas nas águas turvas. Nesses minutos, o pensamento parece uma coisa à toa. A vida descomprime. Entendemos que parte do que nos incomoda é besteira. O resto é poda. A flor no vaso eu posso pôr, e agora. Às vezes, na louca, algo floresce. Vai ver que era disso que falava o bendito Certeau.