Li, meses atrás, que a Justiça de Goiás decidiu agilizar processos de troca do primeiro nome. Sabe-se que pedidos dessa monta podem se arrastar por anos, sem sucesso, por serem considerados problemas menores – um fricote. Além do mais, há quem desista, diante da enxaqueca que é nascer de novo nos cartórios, no banco, nos boletins escolares, na certidão de casamento, na firma, na cadernetinha do fiado, o diabo.
Mas não dessa vez. A razão de tanta sensibilidade foi a recepcionista goiana Raimunda de Jesus Ananias Mendonça, 44 anos, atormentada com a associação imediata de seu nome ao ditado popular – “Raimunda, feia de cara...”. Com base no direito à felicidade, o pedido foi acatado pelo desembargador Itamar de Lima, ele mesmo, suspeito, à mercê do trocadilho “Itamar & Itapior”, agravado depois da gestão Itamar Franco (1992-1995).
Tenho cá para mim que alguém deveria escrever sobre a convivência traumática com o próprio nome. Renderia rios. É raro, afinal, quem não tenha ouvido pelo menos uma história de desacertos com o registro de nascimento. Às minhas.
Na juventude – passada em parte na cidade de Ribeirão Preto (SP) – fiz amizade com uma Lázara, figura de grande humor, exceto quando a chamávamos pelo nome de pia. Fechava o tempo. Nem um carinhoso Lazinha ela consentia, desferindo beliscões a quem ousasse quebrar a regra. Exigia um apelido, que deixo aqui em segredo. Seu nome, dizia, invocava o Lázaro da Bíblia, que nos catecismos aparecia em trajes de múmia e, por suposto, na maior fedentina; além do terrível adjetivo “lazarenta”.
Um Bráulio me disse que desenvolveu uma tática para neutralizar os tios do churrasco, que insistem na mesma lorota
Na mesma época, tropecei em outra Lázara, essa uma amante do próprio nome. Dizia-o com as vogais bem abertas, tornando-o uma música para os ouvidos. “LÁ-zA-rA. Acho lindo. Ao ouvir minha arguição pró-Lalá, Lazinha quase me atirou na linha do trólebus da Vila Tibério. Como as Raimundas em geral, as ruindades sofridas por causa do nome lhe despertavam uma bílis de ódio. De nada adiantava argumentar que existiam casos melhores ou piores que o dela.
Eu mesmo conhecia um exemplo, de um grande chapa do ensino médio, piracicabano talentoso, batizado de Reosvaldo Benedito. Um caso único. Nosso professor de Grego não se conformava. Como alguém podia ser “duas vezes Osvaldo?”, interpelava-o, incrédulo. “Reos”, como chamávamos, não só curtia a alcunha como fez dela uma marca. Seu pseudônimo, usado nos versos que traçava, não era menos exótico: “Suetônio”. Penso que assim permanece, uma persona rara. Talvez por causa da sua atitude brincalhona, amores e rancores a nomes pessoais me atraiam tanto.
Na pequena cidade de General Salgado (SP) conheci – ainda no tempo dos dinossauros – duas irmãs que se chamavam “João” e “Antônio”. Era o nome que o pai pretendia dar aos filhos que nasceram filhas, e não arredou o pé. Ouvir “oi, eu sou a João. Ela é a Antônio” fazia a gente se sentir dentro de algumas das brasileiríssimas historietas de Ariano Suassuna, nas quais tudo pode acontecer.
Na mesma ocasião, fui apresentado a uma religiosa que, ao fazer os votos, teve o belíssimo nome Inês substituído por Sérgia. Debaixo dos véus da castidade, pobreza e obediência, não sabia se chorava o nome perdido ou o fardo ganho. Ao escutar o relato, em consolo, um conhecido disse, em ato falho: “Que triste, irmã Jorja”. Era essa a sina de Sérgia desde então – ser chamada de Orlanda, Hamilta, Plínia ou qualquer outra coisa que não funcionasse no feminino, nem que Deus mandasse. Até hoje me pergunto se Sérgia conseguiu ser Inês de volta – era seu desejo confesso.
Parte dos dissabores, eu acuso, é culpa dos anos 80 – pródigos em fabricar diversão fácil com piada chulé. Em vez de inspirar – como as Cecílias de Chico Buarque –, o nome passou a ser usado para avacalhar. Desconheço alguma mulher que deteste se chamar Amélia por causa da música de Ataulfo Alves e Mário Lago. Ai, que saudades da Amélia é tão incrível que, aposto, tem feminista que a canta no banheiro. Não se pode dizer o mesmo das Adelaides.
Nos tempos do besteirol, bastava uma Adelaide se pronunciar para alguém cantarolar “Adelaide, minha anã paraguaia”, hit gosma do grupo Inimigos do Rei. Cerca de 90% das atingidas eram da minha família, na qual o nome tem longa tradição. Parentas amadas, desculpe acordar esse monstro da lagoa. Kátia Flávia, a louraça belzebu de Fausto Fawcett, teve destino melhor: o refrão “um Exocet – calcinha”, numa referência erótica aos mísseis usados na Guerra das Malvinas, fez mais sucesso do que a heroína muito doida. Além do mais, as Kátias já tinham sua piadinha pronta desde 1982: “Não está sendo fácil viver assim...”
Também oitentista, o obscuro duo Piu Piu de Marapendi causou torturas em série com o Melô do Waldemar. Cruel. O estrago só não foi maior porque o nome ficou no passado, com difícil chance de renascer, a exemplo de Astolfo ou Valdir. Em tempo – as Cleusas e Creusas devem ter rogado praga no Renato Aragão.
Convenhamos, em matéria de aporrinhação, nada se compara à provocada pela campanha da prevenção da aids de 1995. O ator Emílio de Mello aparecia conversando com seu pênis, o Bráulio. A ideia nasceu aqui em Curitiba, com base em pesquisa. Na lista de epítetos apontados para o dito cujo constava Petrônio, Bastião e Tonhão, todos à prova de bullying. Mas a escolha recaiu sobre... Para terror dos Bráulios, que há 20 anos escutam risinhos nervosos assim que o interlocutor liga o nome à pessoa.
Um Bráulio me disse que desenvolveu uma tática para neutralizar os tios do churrasco, que insistem na mesma lorota. Consta de um risinho cínico de canto de boca, acompanhado de ar de desprezo. Aprendeu tudo com os Mários, esses incansáveis.