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 | Foto: Aniele Nascimento. Arte: Felipe Lima
| Foto: Foto: Aniele Nascimento. Arte: Felipe Lima

Anos atrás, o estilista Car­­los Miele, da M. Officer, esteve em Curitiba para abrir uma exposição no Museu Metropolitano. Foi um sururu. Era a primeira passagem de uma estrela da moda pelo mundo das artes plásticas, feito que, em 2004, seria repetido com muito mais alfinetadas pelo também estilista Jum Nakao.

Bem, lá fui eu para uma entrevista que prometia ser uma indigesta conversa com uma entidade fashion. Para piorar, não fazia a mínima do que perguntar. Meu vocabulário do assunto dava mal-e-mal para o tititi.

Pois me enganei. O Miele não usa salto alto. Em vez das últimas tendências nas maisons françaises, tagarelamos sobre São Paulo, cidade natal do degas. Ele contou de seus antepassados alfaiates e dos tempos idos, quando circulava moleque pela Ipiranga e a Avenida São João. "Tenho saudades da época em que eu conhecia os mendigos da minha rua pelo nome", disse antes de subir para a suíte presidencial.

Tem frases que a gente nunca esquece. Aquela foi uma. Fazia muito tempo que eu não lembrava dos doidos varridos da minha infância. Se a gente não sabia como se chamavam, inventava. Era o caso do "Homem sem Perna", sobre quem tricotávamos histórias a cada vez que o víamos, arrastando-se com a ajuda de uma lata de leite Ninho em cada mão.

Passado de mendigo é como vidas passadas – sobrenatural. Ninguém carregou tijolos para erguer pirâmides. Todos fomos faraós, no melhor do estilo Yul Brynner em Os dez mandamentos. Mendigo sempre foi rico, sabido e guarda um grande segredo. Daí o fascínio que exercem. Haja vista Chaplin e seu Carlitos.

Hoje os miseráveis são tantos e passam tão rápido que mal dá tempo de fantasiar se um dia foram proprietários de uma cobertura no Batel. O Jacó, o men­­digo da minha rua, foge à regra. Chegou faz uns sete anos, e para ficar. Digo que ele integra a paisagem da Água Verde tanto quanto o Campo do Atlético.

Jacó faz o tipo sistemático. De manhã, toma café preto nas pa­­darias, com tostões ganhos em bicos de jardineiro. A seguir, ba­­te cartão na Ângelo Sampaio com a Petit Carneiro. Não desgru­­da do radinho de pilhas. À noite, um luxo, dorme na Brasílio Iti­­berê. Nas horas vadias lê revistas de fofocas encontradas no lixo. Vez em quando, recebe visitas de trecheiros de outras paragens, com os quais se desdobra em hospitalidade.

Faz tudo sempre igual – a não ser que alguém lhe dê de be­­ber. Debaixo da cachaça, o ho­­mem quieto se torna um verborrágico profeta da Apocalipse. Não é sua única persona etílica. Dia desses, baixou nele o Roberto Jefferson. Vociferou contra o Lula por 13 horas seguidas, à re­­velia do Bolsa Família e das cotas. Não se calou nem depois do grito ecoado de uma janela: "Cale a boca, Jacó!"

Manhã seguinte, cantarolou sob nossas janelas, bebeu o café da Terezinha e tomou chá de sumiço por uns tempos.

A aposentada Terezinha Me­­lo, 55 anos, é paranaense de Ca­­lifórnia. Um de seus feitos pela rua é plantar pés de abacate nos canteiros vazios. O outro é cuidar do Jacó. A amizade entre os dois começou quando ela ia à missa e encontrou o pobre pela calçada. Ele lhe pediu esmola, mas o R$ 1 que a fiel levava era pa­­ra a coleta. Ao saber disso, implorou que a mulher oferecesse a moeda a Nossa Senhora Apa­­recida.

Tempos depois, Terezinha reparou que Jacó leva no dorso tatuagem da Virgem Negra. Não se largaram mais. A vizinha passou a lhe servir almoço de do­­mingo e a saber dele. Seu nome é Antônio Jacó dos Santos, tem 54 anos e é ariano de 21 de março. Nasceu no interior de São Paulo e sonhava ser jogador de futebol. Torce pelo Coxa, embora more nas barbas do Rubro-Negro. Diz ter uma irmã em Guaíra. E jura nunca ter morado numa casa de verdade.

"Ele só se atrapalha quando está cozido", conta a doce Tere­­zinha, que além de prover refeições, prosa e cobertores da Daju, ajuda o vizinho a juntar as letras nos cadernos em que nosso clochard escreve seus segredos de Joe Gould. "Você já reparou como ele é elegante?", elogia. Concordo. Com sorte, ainda o apresento ao Carlos Miele.

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