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 | Foto: Ivonaldo Alexandre Arte: Felipe Lima
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A Água Verde tem 53 mil habitantes, é o nono bairro mais populoso da cidade. A simples menção do seu nome traz à mente uma paisagem vertical, onde muitos gostariam de morar "para ficar mais perto do Centro..." O resto é trânsito, claro.

Mas até meados do século passado, o rio que batiza aquelas bandas ainda corria solto como um piá. E boa parte dos hoje disputadíssimos metros quadrados da região não pareciam assim tão perto, mas uma eternidade. Principalmente se chovesse e se a lotação pifasse, o que acontecia dia sim, dia também. "Isso aqui não valia nada...", garante o veterano Flávio Bolinsenha, 78 anos, testemunha ocular da história.

Onde hoje tem prédio, havia chácaras e galos se esganiçando à sombra dos parreirais. Os terrenos eram esmagadoramente de propriedade de italianos – alguns deles, há quem diga, oriundos da Colônia Cecília, apontada como a principal experiência anarquista do Brasil, mas de cujos ideais já tinham se aposentado.

Uma vez trocada a Colônia Cecília pela Colônia Dantas – como já foram chamadas aquelas paragens – restava um problema, em especial para quem morava atrás do cemitério. "Onde jogar bocha?" [pausa] Nem as glórias de Garibaldi causavam tanta comoção.

Por décadas os italianos "lá de baixo", como eram chamados, tinham de bater perna até a Sociedade Água Verde e a D. Pedro II, onde vez em quando podiam exercer o sagrado direito ao bocce. Mas se recomenda que assim como a massa e o vinho, o jogo seja consumido todos os dias, de preferência longe do olhar das nonnas e das mammas, em geral sensíveis a emoções fortes.

Restava à italianada brincar de bocha nos quintais – botando porcos e galinhas em risco de traumatismo craniano. Ou recorrer ao terreno de fundos do Bar do Alvarinho Baggio, cujas contribuições ao bocce mereciam constar em ata na Câmara Municipal. Embora acanhado, o local chegou a ter seus heróis olímpicos, como Pedro Baggio, famoso pelos lances que chegavam a avariar telhados. "Quanto mais cerveja bebia, melhor ficava", jactam-se seus contemporâneos, ao descrever os efeitos comprovados da cevada caseira sobre a pontaria.

Em 1952, esses problemas acabaram – um terreno na Rua Marquês do Paraná passou a abrigar a Sociedade Operária 25 de Maio, nascida para ser um templo do bocha nos rincões da Água Verde. Assim permanece há 60 anos, hoje comemorados. Neste tempo, não só não faltou freguesia como ali se desenvolveu uma modalidade do esporte ítalo – "um clássico", nos dizeres do agrônomo Joni Zanetti, 63 anos, praticamente um júnior entre os frequentadores, cuja média de idade desafia a expectativa de vida nacional.

Em vez de bola para o alto, na "25" a bola rola no chão. Na pista só se pisa com chinelo de flanela. Um luxo ver a velha guarda quase deslizando para conferir a pontuação no meio da quadra, em geral trajando boné de veludo. É espetáculo tal que o cineasta Estevan Silvera o transformou no documentário Não jogue, curta, filmado em 8mm.

É fato que a turma da sociedade encolheu – são cerca de 60 sócios, algo como 0,1% de toda a Água Verde. Em sua maioria, torcem pelo Paraná Clube. E sofrem de saudade crônica do passado, da qual se tratam jogando bocha às quartas e sábados. Natural. As famílias dos participantes convivem há mais de um século, o que faz com que Baggios, Zanettis, Pedro Bons, Tedescos, Merlins, Pazellos, Dorigos e quem mais sejam primos e primos dos primos, formando árvores genealógicas mais cabeludas que a Unificação do Reino da Itália.

Perguntei-lhes qual a magia do bocha. Uns dizem que "faz amigos" – não na hora do jogo, mas na comemoração, em seguida. Outros afirmam que "une inteligência, destreza e sorte". Mas a melhor definição é a de que "porque cada partida não demora mais de uma hora". Pode ser rápida, mas nunca é superficial. Eis o segredo.

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