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José Carlos Fernandes

Os anjos da Catedral

 | Foto: Edson Schinemann e Arte: Felipe Lima
(Foto: Foto: Edson Schinemann e Arte: Felipe Lima)

Não disponho de provas estatísticas, mas suspeito que neste exato momento milhares de pais estejam ensinando a seus filhotes a oração do "Santo Anjo". Pode ser útil para que não batam a cabeça na quina da mesa, para que não sejam levados pelo homem do saco e para não serem atropelados pelo biarticulado. Acima de tudo, a oração serve para que perpetuem a crença de que alguém nos "acompanha, rege e guarda" – garantindo o direito a segurança em tempo integral, sem encargos trabalhistas.

Anjos, como se sabe, são seres de uma complexidade wittgensteiniana. Não queira entendê-los. Invisíveis e silenciosos, não aproveitam da sua onipresença para dar uma mão na cozinha ou digitar nossos trabalhos escolares. Questão de praticidade. Se pudéssemos vê-los ficaríamos basbaques diante de tanta beleza. Ou se pelando de medo, caso o modelo a nós designado fosse aquele só com cabeça e asas. Sem falar na tentação que teríamos de pedir caronas para poder atravessar a Visconde de Guarapuava às seis da tarde, momento em que Deus testa nossa boca suja.

Melhor que permaneçam onde estão – estampados naquele pôster antigo, no qual aparecem protegendo crianças em meio a uma tempestade. E espalhados pelas igrejas. Ao vê-los nos altares e frontões nossos temores de penitentes se convertem em delícias de HQs. De uns tempos para cá, aliás, não tiro os olhos dos anjos plantados no alto da Catedral de Curitiba. Estão ali desde 1893, mas só me dei conta há pouco, enquanto esperava um ônibus na Tiradentes. Nos vemos agora todo dia. Virou meu Big Brother. Meu Asas do Desejo. Meu amigo imaginário.

São dois privilegiados. Em 119 anos a postos, assistiram de camarote à passagem do dirigível, em 1936; a Marcha da Família com Deus pela Liberdade, em 1964; os sem-terra gritando palavras de ordem rumo ao Centro Cívico, em 1999. Curtiram os artistas de rua cantando Raul – e não chamaram o fiscal. Tuitaram a vida louca na Riachuelo. Ignoram o que é tédio. E como habitam a 25 metros do chão, são livres da moda estação e da proximidade com estranhos – fobia de parte do 1,8 milhão que vive cá em baixo.

Há uma semana, o operário da construção civil Elói José Batian, 42 anos, subiu os seis andares de andaimes instalados para o restauro da Catedral e viu os anjos de perto. Diante deles, fez o que sua mãe faria: rezou "Santo Anjo do Senhor, meu zeloso guardador...". Pediu pelos seus. Depois, mirou a dupla. Ah, o tempo, não poupa ninguém. O anjo com a mão levantada aos céus tinha um dedo quebrado e uma perna avariada. O que traz as mãos em prece perdera o nariz. Elói fez reparos de cirurgião com o uso de cimento e espátula, encerrando ali o mais emocionante de todos os expedientes.

Sabe-se pouco sobre os anjos da Catedral. São baixinhos. Têm um metro cada, aparentam entre 15 e 18 anos e são desobedientes ao Simepar: vestem unicamente um lençol. A peça lhes cai pelo tronco em dobras barrocas, até lhes tampar o sexo, perpetuando a mais longa das discussões teológicas. Reinam nas alturas, mas não estão sós. No interior do templo outros anjos se multiplicam nos relevos. Dominam os murais. Ilustram os capitéis, não raro de olhos esbugalhados deixados por maus restauradores.

Tudo indica haver mais anjos na Catedral de Curitiba do que nas outras, assim como mais frisos e mais cores. Por isso tantos a chamam de kitsch e relevam seu gótico tardio aos rodapés da História da Arte. A arquiteta Giceli Portela, responsável pela restauração atual, ainda se pergunta por que esse lugar é tão diferente. Tem palpites. Os homens o ergueram. Mas devem ter sido as mulheres imigrantes que sugeriram decorações, fazendo da construção uma grande pêssanka ornada de seres alados. Talvez quisessem que seus filhos nunca esquecessem o "Santo Anjo" e suas promessas de proteção. Ou tampouco delas.

P.S. Se você não acredita em anjos, relaxe. Existindo ou não, eles fazem um bem danado à imaginação, essa louca que nos salva, amém.

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