O paraibano Francisco Manoel de Oliveira, 64 anos, o frei Chico, carmelita, é um sertanejo forte – um personagem de Os Sertões de Euclides da Cunha, o homem perto de um santo. Mas que não se espere dele o olhar mortificado. A face transcendente. Qualquer sorte de clichê aprendido nas hagiografias ou nos filmes estrelados por Jennifer Jones e Olívia de Havilland. Tem a cabeça erguida e a voz de quem manda. Passa corridões, sem cerimônia. Não fica à vontade com meias palavras, meios tons, meias verdades. Os desavisados que esperam dele a gravidade clerical, que procurem outra paróquia.
Sobre sua mesa de trabalho, uma pista. Tem a Bíblia, livros de piedade, mas também a biografia do capitalista Visconde de Mauá, escrita por Jorge Caldeira. Está relendo, com interesse de um colegial. Impressiona-se com a saga do criador de estaleiros, ferrovias e indústrias do Brasil do século 19. Tudo indica que tenham a ver, não em moedas, mas na sanha. Fosse o frei uma taça de cristal, talvez não erguesse sua assombrosa rede de assistência social, formada por 12 centros de atendimento a 200 dependentes químicos – todas debaixo do inspirado nome “Casa do Servo Sofredor”. Como dizia Hannah Arendt – o mal é banal, só o bem é radical. Frei Chico é um radical, não lhe peçam mesuras a essa altura da história da humanidade.
É de sangue. Os Oliveira são de Santana de Mangueira, antigo distrito de Conceição do Piancó. Viraram retirantes da seca em 1958, rumo a Paranavaí, Paraná, onde serviram nas lavouras de café. Expedita, a mãe de 17 filhos, tinha fineza de sinhazinha e pedia que os seus estudassem. Manoel Job, o pai de origem judaica, militava nos sindicatos rurais. Com o golpe militar de 1964, foi convidado a se retirar para o Nordeste, acusado de comunista. Foi, mas, desobediente civil, voltou, com a fúria de um titã. Para confusão de seus detratores, chamava todo mundo de “camarada”, o que causava graça em se tratando de um sujeito inseparável das contas do rosário.
Escutar é tão urgente que deveria virar verbo impresso numa carta de princípios da ONU
Não por menos, ao criar as Casas do Servo Sofredor, o filho do sindicalista não pensou em fazer, sei lá, uma compressa de salompas para aliviar a realidade. Queria revolução. Os abrigos são a última trincheira para uma pá de gente que pegou no rabo do foguete. A maior parte dos residentes passou por meia dúzia de clínicas e ONGs, nas quais colecionaram vias sacras para aquietar o imperativo do álcool e das drogas. Algumas famílias torraram o que tinham para a recuperação de seus filhos. Desembarcam ali lisas, com o fio de esperança entrando em curto circuito. Encontram o frei na recepção, parecendo mais alto do que é, para uma conversa adulta sobre a parte que cabe a cada um.
Até pouco tempo, era possível achá-lo a qualquer hora do dia, como se morasse ali. E morava de fato, num quarto e sala dentro do Mosteiro Monte Carmelo – chácara de 60 mil metros quadrados cravada no Sítio Cercado. Podia ser solicitado pelos que se viam, súbito, assaltados pelas alucinações da abstinência. A suspeita dos conhecidos é de que passou 15 anos sem dormir direito. Hoje, debaixo da rédea do voto de obediência, pernoita numa pequena comunidade do Bairro Novo, formada com outros cinco consagrados. O resto do tempo, só no batente, a bordo da usina de misericórdia que criou.
A Casa do Servo Sofredor do Mosteiro Monte Carmelo é a maior da rede. Abriga 80 moradores, todos a portas abertas, à espera de uma deixa para desaguar seus rios de problemas. É preciso ter nervos de aço. As olheiras fundas não traem o frei. Num lapso, admite que chega a hora “de se aquietar”: planeja passar para a ala contemplativa de sua ordem, e é para logo, mas não sem antes cumprir o mandato de líder da Federação Paranaense de Casas Terapêuticas (Fepac), para a qual foi recém-eleito. Anda a mil. Difícil imaginá-lo na cela, silente, à margem da vida pública que ganhou fôlego há mais de 30 anos, quando fazia pastoral – e história – na favela da Vila Lindoia, às margens do Córrego Guaíra, seu marco zero.
Foi ali que frei Chico praticou pela primeira vez a arte da escuta – ou “escuta terapêutica”, na norma culta. Conhecia-a de ouvir falar, sobre uma experiência realizada em Belo Horizonte pelo psiquiatra Márcio de Miranda. A proposta era de uma simplicidade tocante: durante no máximo 40 minutos, um voluntário ouvia, sem interferência, o que o outro tinha a dizer. O outro, no vocabulário de frei Chico, atendia pelo nome de moradores de rua, adolescentes à mercê da violência e dependentes químicos, para os quais criou em 1994 a primeira Casa do Servo Sofredor. A escuta veio no enxoval.
É certeiro. Ao falar, falar e falar, as vítimas da drogadição “costuram” o manto de seus dramas, amarram as pontas perdidas. O que se dá nesses encontros lembra o ocorrido com Artur Bispo do Rosário, que bordava palavras num manto, para, quem sabe, formar frases que lhe devolveriam o juízo. No momento, a Casa do Servo Sofredor do Sítio Cercado tem oito escutadores e mais quatro psicólogos. As rodadas de escuta acontecem sempre às quartas-feiras de manhã, quando os bosques do mosteiro ficam pontilhados de duplas. O escutador não pode interferir, julgar, comentar. Também não pode ser um robô – há salvo conduto para chorar e abraçar. Há quem vicie em ser todo ouvidos. “Digo a eles que quando terminam devem ir para casa escutar o que escutaram”. Quanto aos escutados – não oscila: “Tem quem ressuscite”.
Escutar é tão urgente que deveria virar verbo impresso numa carta de princípios da ONU. O educador Rubem Alves pregava que as escolas bem podiam ensinar a escutatória antes da oratória. A jornalista Eliane Brum – que mais de uma vez se autoproclamou uma escutadeira profissional – defende que escutar é se sentar no banquinho mais baixo, ao lado de quem fala, ali permanecendo todo o tempo preciso. Sugere que escuta bem aquele que se esvazia de tudo o que sabe. É um absurdo para a filosofia, mas não para ela, que garante ser possível zerar mente, coração e se verter num escutador categoria tábula rasa.
Frei Chico diz mais – “escutar é uma mística”. É fato que deixou de fazer escutas, mas as observa, entusiasta que é, de preferência em espaços em que acontecem “na louca”. Pode ser nas alamedas de Toronto, no Canadá, por onde andou. Mas também na Rua XV e no Terminal Guadalupe, dois dos lugares onde se senta, anônimo, para sondar a probabilidade de aparecer um escutador espontâneo, disposto a gastar tempo com um mendigo ou um idoso. Nunca se decepciona. Embora em baixa, o milagre da escutação acontece, num desafio à ditadura da falação.
O que Bolsonaro e a direita podem aprender com a vitória de Trump nos EUA
Perda de contato com a classe trabalhadora arruína democratas e acende alerta para petistas
O aumento dos juros e a chiadeira da esquerda; ouça o podcast
BC dá “puxão de orelha” no governo Lula e cobra compromisso com ajuste fiscal
Deixe sua opinião