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Os herdeiros da era “lambe-lambe”

 | Foto: Henry Milléo/Arte: Felipe Lima
(Foto: Foto: Henry Milléo/Arte: Felipe Lima)

O psicanalista Paulo Koehler me fez ver algo em que nunca tinha pensado: milhares de pessoas guardam retratos antigos feitos por lambe-lambes – fotógrafos ambulantes que em tempos idos atuavam nas ruas e praças das cidades. Esse material anônimo serve de fonte de pesquisa sobre os “hábitos e costumes” de uma época, da roupa ao cabelo, do lazer à vida em família.

Em Curitiba, os “lambes” eram populares na XV e no Passeio Público. Vasculhe os álbuns amarelados e por certo vai encontrar o retrato de um parente, em trajes de domingo, batendo perna na Rua das Flores, não raro com rabo de olho diante da câmera intrusa, a lhes interromper o footing na Cinelândia.

O fim anunciado da “cultura lambe” veio na década de 1970, com a popularização das Kodaks, e se consolidou nos 2000, com a revolução informática. Por ironia, Koehler pretende usar das benesses da era digital para reunir um imenso acervo das fotos “roubadas” pelos lambe-lambes, salvando esse patrimônio do esquecimento.

A maratona já começou. Sabendo que Paulo se debruça sobre o assunto, alguns deram de vasculhar seus guardados em busca de tesouros. Uma vez escaneadas, essas imagens começam a formar um “arquivo universal”. Não sem dificuldade. Ao contrário do que acontece quando se fala de fotógrafos de fino trato, como Wischral e Glück, os “lambes” não ganharam míseras notas de rodapé. Fiz o teste em colóquio com entendidos. Debaixo de desculpas, a maioria confessou não lembrar o nome de nenhum lambe-lambe, ainda que ninguém negue a importância que tiveram e coisa e tal. Falta entrevistar o Luiz Geraldo Mazza, que sabe de dois manos que faziam “lambes” na XV.

Num lapso de minutos os retratistas tinham de sorrir para a freguesia, cortar os negativos, controlar a abertura do diafragma e o humor imprevisível dos químicos

Muitos desses ambulantes eram aventureiros – quais os descritos no belo livro O pintor de retratos, de Luís Antônio de Assis Brasil. Uma vez dominado o ofício, partiam para práticas mais rentáveis. De acordo com os relatos, uma foto dessas, revelada às pressas, custava, sei lá, o preço da passagem do bonde. Mas nem todos a viram como um degrau apenas. Houve quem tenha feito do cotidiano de pedestres uma razão de viver – a exemplo de José Estevão da Silva e Amado Gomes de Oliveira. O primeiro, um inventor, célebre por cerrar uma Rolleiflex, adaptando-a à mecânica “lambe”. O segundo, um expedicionário, que percorria o interior numa carroça, fotografando inclusive defuntos no caixão.

Os dois lambe-lambes abriram quiosques no Passeio Público na década de 1960 e causavam impressão. Ambos ensinaram as manhas da profissão a seus descendentes, que, homens feitos, permanecem no parque, adaptados à nova ordem. Estevão Filho, 69 anos, abandonou a fotografia em 1995 – vende água, sorvete e lanches de ocasião. Gideão, 56 anos, filho de Amado, também comercializa sortidos, mas mantém o serviço de fotos digitais. Até há pouco tempo, deixava o famoso cavalinho de balanço, usado pelas crianças, na porta do estabelecimento – um chamariz para os saudosistas. Por ordem de algum burocrata da prefeitura, o brinquedo foi retirado, debaixo da alegação de que causa “poluição visual”.

O lambe-lambe se tornou tão folclórico quanto o realejo, o que não significa que fosse destituído de sofisticação. A máquina era acoplada a um caixote artesanal decorado, dotado de uma cortininha que fazia as vezes de câmara escura. Nesse exíguo espaço tinha de caber um estúdio inteiro – o que incluía pequenos recipientes para reveladores, fixadores e, claro, benditos vinagres. Como eram poucas chapas, arre, não havia margem de erro, gritava-se: “1, 2, 3”. Os mais charmosos provocavam explosão com pólvora ao apertar o disparador. Puf!

Se parece pouco, lembre-se que as fotos eram feitas em meio ao deus-nos-acuda de crianças birrentas, pais impacientes, namorados em fogo, noivas recém-saídas do altar e intrusos “querendo aparecer”. Num lapso de minutos os retratistas tinham de sorrir para a freguesia, cortar os negativos, controlar a abertura do diafragma e o humor imprevisível dos químicos. Quando fazia frio – e na Curitiba daqueles idos, dizem, fazia – o revelador demorava mais a agir, o que forçava o fotógrafo a dar baforadas para esquentá-lo, tirando recursos do fundo dos pulmões. Teria vindo daí o apelido “lambe-lambe”, mas são muitas as versões. Há quem diga que, ao se enfiar atrás do pano para verificar o enquadramento, os retratistas davam a impressão de estarem lambendo o papel.

O exibicionismo selfie parece não deixar muito espaço para o lirismo dos lambe-lambes. Mesmo assim, não passa semana sem que nossos heróis Gideão e Estevão atendam um veterano, portando uma foto em sépia, querendo saber se dá para repetir a dose com os netos. Tem quem teime nessa causa. Em Belo Horizonte a prática foi declarada “patrimônio imaterial”. Em Aparecida ainda é possível encontrá-los. E também existe lambe-lambe em Cuba, por ora.

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