Quem ouve o Gilberto Gil costuma reparar o quanto ele gosta dos termos simultaneidade e sincronicidade. São seus chicles de bola. Parecem resumir seu (divino maravilhoso) olhar sobre... tudo. E batata – bastam dois minutos para as duas palavras darem de martelar no juízo. Fica impossível não fazer sinapses, não reparar na mais boba das coincidências, como se de repente uma gambiarra cósmica regesse nossos passos bêbados.
Foi graças à macumba da sincronicidade que soube dos irmãos Nelson e Sérgio Matulevicius, um escultor; o outro fotógrafo, escalados entre os melhores de sua geração. Conto o acontecido. Ano passado, durante uma reportagem para a Gazeta do Povo, o advogado René Ariel Dotti – ao lembrar do pai, um modesto decorador de paredes – fez um desses “gatos” mentais e se pôs a falar, “assim do nada”, sobre Nelson Matulevicius. Rolou sentimento. Deixou-se fotografar, inclusive, ao lado de uma cabeça de Voltaire, feita pelo artista amigo, a quem se referia como se o tivesse encontrado ontem, na Boca Maldita.
Dias depois, “assim do nada outra vez”, um veterano leitor da Gazeta – residente em Porto União (SC) – remeteu para a redação exemplares antiquíssimos da revista O Cruzeiro. Não foi a primeira vez que mandou esse brinde. Sua intenção é mostrar que o Brasil lhe parece um exercício maluco de patinação na lama. A pobreza, violência, a corrupção, escreveu, são males que nos colam aos calcanhares, vejam, “as reportagens de O Cruzeiro são a prova...”
Detalhe – na edição, de 26 de dezembro de 1959, qual surpresa encontrar um gordo registro jornalístico sobre a Guerra do Pente, o levante popular que parou a Praça Tiradentes nos dias 8 e 9 de dezembro daqueles idos. O pedido recusado de uma nota fiscal a um lojista árabe foi o estopim para uma histeria coletiva, expressa em grossa pancadaria, algo como um evento preparatório para a grita reservada a Letícia Sabatella na Praça Santos Andrade.
O texto – intitulado “Pente faz Curitiba perder a cabeça” – é do jornalista gaúcho Ivar Feijó. As fotos – absurdas de boas – são de ... ei-lo, Sérgio Matulevicius, irmão mais novo de Nelson. Impossível olhá-las e não soltar um “putz”. Por que diabos ninguém nunca entrevistou o homem que clicou a Guerra do Pente. O mesmo vale para Nelson, deixado à sombra eterna, com honrosa exceção para o cronista Dante Mendonça e o cartunista Solda, arautos ocasionais do morto ilustre.
Semanas atrás, um novo assalto dos irmãos Matulevicius – dessa vez vindo da marchand Eugenia Petriu, dona da Galeria Cocaco, o primeiro espaço de arte contemporânea da cidade, fundado em 1957. Tal como René, Petriu fala de Sérgio e Nelson como se tivessem brincado juntos nos balancinhos do Passeio Público. Seu lamento é o mesmo – bem que podiam escrever sobre esses dois. Não foi a primeira a pensar nisso. Um dos projetos interrompidos do jornalista Walmor Marcelino, morto em 2009, era biografar os manos. Manifestou seu intento à melhor fonte sobre o assunto na paróquia, a psicóloga e arte educadora Vera Alberini, 67 anos, namorada de Nelson por duas décadas. Nessas longas núpcias, provou de tudo, menos de monotonia. “Ele era a síntese do artista boêmio. Cantava até ópera. Sua conversa, de babar. Não ia trabalhar, tinha muita coisa para ler”, resume, para entendedores.
Por ironia, os Matulevicius são dois nomes cercados de silêncio por todos os lados. No setor de pesquisa do Museu de Arte Contemporânea, o MAC, conhecido por seu rigor, há apenas uma pasta magrinha, dedicada a Nelson, “o escultor do Tancredo da Osório e do Bento do Centro Cívico”. Sobre Sérgio, necas. É provável que haja mais material no acervo de seis mil pastas deixado pela crítica de arte Adalice Araújo (1931-2012), mas o material ainda se encontra refém de inventários.
Em contrapartida, não faltam amigos, que bem podiam criar vergonha e se apressar em contar o que sabem sobre os Matulevicius. Ponha-se na lista os pintores Fernando Velloso, Rogério Dias e Cambé, o guru da contracultura Wilson Rio Apa, os advogados Carlos Frederico Marés e Dálio Zippin. Alguns dos que teriam muito a dizer partiram dessa para outra, a exemplo do pintor Loio Pérsio – com quem Nelson traçava longos colóquios nos cafés da Rua XV –, o ex-prefeito Maurício Fruet e o escritor e publicitário Jamil Snege, the best friend do nosso personagem. O posto de amiga pertencia à ex-miss Paraná Ângela Vasconcelos. No empuxo, muitas dessas testemunhas oculares da história poderiam ajudar a juntar os cacos sobre o brilhante Sergio.
Os irmãos Matulevicius eram naturais de Rio dos Cedros, Santa Catarina. Descendentes de lituanos e poloneses, teriam desfrutado na infância da companhia da italianada da região – com a qual aprenderam a rebater as rasteiras com doses cavalares de felicidade. Assim seguiram. Há registros de que Nelson aprendeu a esculpir com o italiano Guido Lombardi e com o fundidor alemão Fritzhaldt. Durante uma temporada paulista, agarrou-se no escultor Joseph Meneguete, um mestre – segundo uma rara entrevista à imprensa. Costumava dizer que ensinou Sérgio a fotografar. Crescidos, tornaram-se parecidos na essência, mas diferentes na aparência. Nelson – um gigante loiro, de barbas olimpianas, dentes de George Clooney e olhos de farol, pedia para ser assediado pelas mulheres, mesmo que estivesse alguns goles à frente da turma. Agradava a audiência, exceto, claro, seus desafetos, entre eles o poeta Paulo Leminski, com quem teria saído no pau pelo menos uma vez.
Sérgio – não tão agraciado pelos deuses – compensava com calças bem cortadas o posto honorário de patinho feio. “Era um dândi”, resume um de seus conhecidos, o jornalista Roberto Muggiatti, sobre o sujeito que fez carreira no Rio de Janeiro, integrou o seleto grupo de fotógrafos da revista Manchete e se casou com uma das mulheres mais desejadas de seu tempo – Rose Rondelli, ex-senhora Chico Anysio, atriz do Teatro Rebolado e uma das cativas no concurso das Certinhas do Lalau, promovido por Sérgio Porto. Em 1960, ainda em CWB, Muggiatti e Sérgio produziram para a revista Panorama uma soberba reportagem sobre jazz em Curitiba. Depois, dividiram o mesmo teto na Editora Bloch, até se perderem um do outro.
Enquanto Sérgio estava lá nas alturas, o “Barbudo”, como muitos se referiam a Nelson, batia cartão na escola do vampirismo. Tinha seu apê-ateliê e abatedouro ocasional no oitavo andar do Edifício Tijucas, embora tenha morado em lugares menos ortodoxos, como o sótão do restaurante Velha Adega, do mítico Victor Polaco. Nunca se casou, não teve filhos, não juntou fortuna. Fez três míseras exposições, mesmo sendo o preferido de políticos e endinheirados. Em 2006, seu velório contou com pencas de engravatados. A cena lembra o livro Fantasma, de José Castello. Recomendo. “Minha teoria é de que os homens o invejavam. Todos queria ter sido livres como ele”, arrisca Vera Albertini. Nelson morreu aos 73 anos. Sérgio, um pouco antes disso.
Vera e Nelson se conheceram no final da década de 1970, durante um carnaval. Ele vinha de uma temporada no Rio – onde o irmão bem-sucedido lhe dava uma força. Numa lojinha de artesanato da Travessa Jesuíno Marcondes, não deixou de reparar na paranaense de Cornélio Procópio, um desacato. “Você tem os olhos de Maysa Matarazzo”, cantou, comparando-a à cantora de quem anos antes tinha esculpido a máscara. Não fosse a concorrência da boemia, estariam abraçadinhos até hoje. Foi o que ela deu a entender, ao aceitar, “assim do nada”, a falar do homem que amou. O Gilberto Gil tem toda razão.
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