Gil Fabrício é um homem pequenino. Tem 43 anos, usa boné de guri e seu peso é o de uma pluma. Parece um passarinho. A qualquer hora do dia, toca o telefone e ele voa para onde lhe chamarem um passeio no shopping, um cinema quem sabe, ao pé de uma cama, onde oferece uma prece e a palavra a quem padece. Essa é sua vida. Gil atua como voluntário na Pastoral da Aids e atende aqueles a quem o HIV deixou só somente só, com uma vontade danada de se ir antes da hora.Falamos um pedaço de tempo pouquíssimo dele, de quem só deixou fotografar as mãos. Economizou nas falas. Mas me forrou de panfletos sobre a pastoral, um projeto criado em 2005, hoje com 160 voluntários, dos 18 aos 80 anos, atendendo 200 pessoas, com idade, sexo e posição social de variações infinitas. A discrição monástica desse cristão é vã. Tudo à volta fala do pequeno Gil, leitor afoito das Confissões de Santo Agostinho e das bulas dos antirretrovirais.
Em cima de sua mesa, na Cúria Metropolitana, há frascos e frascos vazios de Kaletra, Ritovanir e Novir remédios que formam os coquetéis, aqueles. As amostras servem para orientar iniciantes e desistentes, duas tropas no limite. O que mais apavora, confidencia, são os que abandonam o tratamento, botando tudo a perder.
Gil admite: 2011 é o ano em que estamos, a informação corre como um rio, mas nas famílias, no trabalho, no escambau, os contaminados encontram a mesma casca de banana que os derrubava na década de 1980, quanto tudo começou. Não tem refresco: a ira do outro é amarga de tragar. Não por menos, muitos não contam nada a quaisquer, incluindo aos queridos, ou nem tanto assim, como aos prantos descobrem.
Impossível não lembrar do belo texto A doença como metáfora, da ensaísta Susan Sontag. Susan morta em 2004 era uma voz dissonante nos Estados Unidos, seu país. Nas rebarbas da política, escreveu sobre fotografia e até sobre Machado de Assis. Fez de Memórias póstumas um livro pra chamar de seu. A saúde entrou no cardápio ao se descobrir com câncer. Foi quando nos deu um banho no lago gelado.
Ao nascer, escreve Susan, recebemos dupla cidadania a do mundo dos sãos e a dos doentes. Pelo menos uma vez estaremos do lado que não queremos. Pode ser a tormenta. Quanto mais a enfermidade que nos abraçar estiver envolta em mistério, mais será tida como contagiosa, mais se prestará à metáfora. Explica.
A doença vira uma coisa com nome de outra tem título científico, mas serve de tradução para o preconceito, o medo, a estranheza... Foi assim com a lepra, a tuberculose, a cólera e, por que não, com a gripe espanhola, o que talvez explique a desconfiança dos curitibanos ante os forasteiros. Teriam sido eles os culpados por nossos mortos de 1918? O outro, sabe cumé.
Não por menos, Sontag escreveu outro ensaio Aids e suas metáforas. É espeto. O HIV, diz, foi descoberto nos anos 1980, quando viver e morrer já carecia de sentido. Tristes tempos. Não sobrou saída ao vírus recém-chegado ocupou o lugar do câncer como sinônimo de mal. Chamaram-no de "peste" provocada por devassos. Sontag gralha alto a aids é uma doença com bônus: às suas dores se soma a solidão.
Tudo o que há em Susan há em Gil. Ela escreve ensaios. Ele ajuda histórias a serem reescritas. Ambos falam dos que não se perdoam nem são perdoados. São mulheres contaminadas por maridos, idosas que mancham de sangue seus vestidos de lacinhos, jovens encurralados. A aids não escolhe ninguém, diz o slogan. Gil e a pastoral também não.
"Ninguém", aliás, foi a palavra que o artista plástico Leonilson bordou num de seus objetos mais famosos um travesseiro. Leonilson era soropositivo. Diz tudo. Conhecesse Gil, bordaria um passarinho e ali deitaria a cabeça. Depois passaria a mão no telefone. Às favas deuses e monstros. Um café e uma palavra, é disso que se trata.