Aconteceu há mais ou menos 15 anos. Terminada a cerimônia da Sexta-Feira Santa, a paulista Mara Inês da Cruz Silva foi chamada ao altar da Igreja Bom Jesus do Cabral aquele belo templo que fica nos altos de Curitiba. De perna bamba, subiu os três degraus que mais pareciam separar o Céu e a Terra. Receberam-na com aplausos, bem a ela, que tinha chegado à cidade fazia pouco, não conhecia ninguém. Chorou a Paixão e a si mesma.
Não, não se tratava de rapapés de boas-vindas paroquianas. Era agradecimento: em um mês, sem pedir nada em troca, a forasteira tinha restaurado a imagem de "Jesus Morto" da paróquia peça de valor, em madeira, luxo só, como cabe ao Cabral, mas atacada por cupins que devoravam o corpo santo sem piedade. Dizia-se ser caso perdido, que a imagem devia ser serrada, mas não para Inês da Cruz, que usou as armas dos melhores inseticidas e a unção daqueles que creem.
Mal sabiam os paroquianos que aquela tarde de luto sacro tinha sabor de aleluias. Dias antes, quem diria, Inês estava sentada num daqueles bancos da paróquia, dolorosa, às voltas com desgostos só seus. Sentia dó, dizia ais. Bem ela, que gozou do consolo de ser cruzadinha em criança, catequista em menina, guria do grupo de jovens. Nova na cidade fria, tinha deixado para trás sua gente na quente Presidente Epitácio e o emprego de professora na faculdade, na ainda mais calorosa [em todos os sentidos] Ribeirão Preto. Quem conhece a cidade sabe que é verdade. Ribeirão e Curitiba, o avesso do avesso.
Inês tinha vindo com o marido, Natal, e as três filhas, para começar de novo. Estavam bem. Mas sentia sabe-se lá o quê, como se diz ao se referir às buzinas infernais que brotam da alma. Não lhe adiantariam comprimidinhos azuis, compressas, balançar-se à rede. Fez-lhe bem ter se atirado sem trégua à tarefa insana de salvar "Jesus Morto", um pedido do padre. Do contrário, Cristo teria virado poeira, e seria substituído por um infame Jesus made in Taiwan, talhado com as resinas mais ordinárias. Jamais. Aprendera quando jovem a fazer o serviço de restauro. Bem se lembrava como era.
Pelos serviços, ganhou 30, e mais 30 e mais 30 dias, numa salinha ao lado do presbitério tintas, lixas, pincéis de todos os tamanhos. Numa semana lhe davam as Virgens Marias de dedos quebrados e mantos desbotados. Na outra, pediam que devolvesse expressão ao olhar de São Paulo da Cruz. Mandaram-lhe santos de outras paróquias, santinhos de penteadeira. Ela logo se afeiçoou a esse ou aquele, de alguns mal sabia sua vã hagiografia. É o caso de São Gabriel. Tornaram-se íntimos a cada espátula passada nas feridas do casco. Quando a virem, peçam que lhes conte.
Inês da Cruz acabou se tornando também a Inês do Bom Jesus do Cabral aquela que restaura os santos e santas. Os fiéis gostam de lhe contar sobre os santos de afeto. Da jovem vitimada por câncer severo, ouviu o bem que lhe fez a imagem do "Menino Deus", uma das muitas pelas quais Inês fez milagres. Da mãe de um filho sem fé, escutou maravilhas sobre os préstimos de um São Francisco de armário. O "Pobrezinho de Assis", todo penúria, creiam, salvou a fortuna do rapaz.
Eu mesmo, diante das histórias que escuto de Inês, me permito consultá-la sobre os caprichos de São José, meu padroeiro. Recomenda-me mais clareza. Falei-lhe do que recebi de Nossa Senhora Aparecida. Por quê... Por pouco não cantamos a capella um daqueles hinos elevados que fazem eco na Basílica. Contou-me tudo. Sua avó era filha de uma escrava forra. Qual Inês mulher abraçada à cruz que traz no próprio nome , a parenta era agarrada à devoção da Aparecidinha. Passou-a aos seus, mas em especial à neta, a quem deixou em herança uma imagem.
Tirou os carunchos da Aparecida, um a um, e a colocou no nicho, debaixo de cambraias de linho pintadas à mão. Faz o mesmo pelas Virgens e pelos santos que lhe confiam. É bom. Inês da Cruz tem as vizinhas, os amigos da paróquia, a família, e também Das Graças, Auxiliadoras, Medianeiras, Antônios e Joões santos, aos quais fala em segredo enquanto lhes devolve a estampa. Nada de cruz. Esse é seu encanto, amém.
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