Pedrinho Ferreira dos Santos, 57 anos, o Pedrinho Pedreiro, só compra sapatos nas lojas Macieiro do Largo da Ordem. Ele calça número 41-42 e faz o tipo exigente pede solados de primeira, com salto 10. Explica: cansa muito ficar de cinco a seis horas em cima do 15. "Salto 15 é pra gente moça."
Para a semana, Pedrinho prefere uma botina baixa, perfeita na lida dos tijolos. Sua rotina, diga-se, é a de um forte. Quando o galo canta, arranca a camisola rubra, estende o edredon rosa na cama larga e se manda para a obra, na companhia do filho de 32 anos. Vão em trajes de guerra: camiseta de político, jeans surrado e boné de posto de gasolina.
Finda a tarde, de volta ao Cajuru que nasce na trincheira da 277, bate um papo na calçada com a ex-mulher, sua vizinha da frente. Depois sobe, com a exaustão dos justos, a escada do puxadinho. Porta adentro, banho tomado, faz o jantar, vestido de longo. Adora vermelho. Quase não sai, pois dia seguinte, dia de laje. É preciso ter braços e pernas para ser Pedrinho Pedreiro.
Tempos atrás, um bisbilhoteiro espiou pelo muro e viu o operário de branco rendado, decote canoa. O patrão na segunda à vista ouviu poucas do dedo-duro: "Olhe, aquele, sei não..." Mas que nada. O chefe chamou o Pedrinho como se animasse a festa da cumeeira: "Tem de ser muito macho para fazer o que você faz."
Pedrinho faz o tipo que das maldades esquece. Se lhe fazem chalaça, aumenta a graça, deixa o sarrista no chinelo. Fala da vida "nem aí", sempre dando volume ao cabelo chanel, cor indefinida, pedindo um salão. Muda de assunto quando quer e conta piada fazendo performance. Aprendeu com Amauri Ernani e Paula Giannini do Teatro Cultura, onde fez curso de ator. A propósito, me pergunta se tenho o telefone do humorista Diogo Portugal. Digo que não. Ele diz fazer arte. E conta, com voz grave, o que quero saber.
Lá pelos seus 12 anos, na natal Passo Fundo, inventou de vestir as roupas da mãe e irmãs. A mãe fez tremer o chão, do milharal aos Pampas. "Se tá fazendo arte, menino, arte." E dá-lhe cintada, com o pobre sem saber o-que-é que-era.
O menino cresceu, casou, fez filho e de tudo um pouco. Acabou-se na roça até os 20. Foi caminhoneiro dez anos. Casou de novo. Trabalhou até ganhar casco nas mãos, até vincar riachos nos olhos, até ficar triste. Deu de chorar tanto que nem o psiquiatra e o psicólogo lhe tiravam do escuro. Chamavam-no de trans, de bi, de homo, de doido demais.
Nem ele se lembra ao certo, mas cinco anos depois se espreguiçou e inventou de fazer a tal da arte de novo. Sábado e domingo saía à rua de saia. Ia a bailes de salto alto. Com teatro e cinema se meteu. Virou figurinha da Paixão de Cristo do Lanteri. Em 2001, estreou na peça Apocalipse, o capeta de Caruaru. Depois encenou Só falei para acordar seu pensamento, para a qual criou a personagem Gizelly, a heroína romântica a bordo de uma cesta de flores. No longa Mulheres do Brasil fez pontinha no papel de engraxate. No documentário Singularidades, de Luciano Coelho, conta tudo.
A cada novidade, a família em desespero. Queriam que ele se fosse. Como não tinha para onde ir, mudou-se para os fundos. A gastura passou. Hoje, na parede da sala a gente vê as fotos de Pedrinho, em trajes de Gizelly, com o filho e os quatro netos. Meses atrás, emprestou uma bolsa linda à ex-mulher. Tijolo por tijolo, o pedreiro ergueu na meia-água do Cajuru uma zona franca para a diferença.
O território tem até um pequenino monumento, sem cobre nem mármore: uma caixa de ferramentas em que o dono da casa guarda colares e brincos. Sem bijus, sei não, Pedrinho Pedreiro nem saberia quem é.