Dom Pedro Fedalto, o arcebispo emérito de Curitiba, está em retiro espiritual. Avisa que não o perturbem. Tem motivos. Ontem (11), o homem que esteve à frente da arquidiocese por mais de três décadas completou 90 anos. No final deste mês, dia 28, outro festejo – suas Bodas de Ouro de ordenação episcopal, ocorrida em 1966.
Dar contas das duas efemérides será como cruzar o Mar Vermelho. Pedro tem uma legião de seguidores – no sentido menos digital do termo. Neste mês de agosto terá de atender telefonemas a mais, distribuir bênçãos aos pios, entregar-se aos cumprimentos e, por fim, enfrentar um concorrido almoço em sua homenagem no bairro Santa Felicidade. São quebras de rotina demais para quem pegou gosto pela vida em segredo, no Seminário São José de Orleans, seu endereço depois da aposentadoria compulsória, em 2004.
Sem falar nos perigos que a multidão lhe impõe. “Meus ossos dos pés são como um isopor. Não posso cair”, avisou Fedalto, em entrevista dada dias antes de se recolher no Mosteiro Carmelita do Guabirotuba. O arcebispo está de bom humor, inclusive para falar dos achaques da idade. Passa bem, mas não esconde que adoraria morrer num sábado, como torcem para lhes acontecer os devotos de Nossa Senhora do Carmo em geral, seu caso. “Os escapulários que partem nesse dia da semana vão direitinho para o céu”, avisa, não sem antes discorrer – com o saber enciclopédico que o tornou célebre – sobre a origem dessa tradição.
Pedro é objeto para a ciência. Na visita de Francisco ao Brasil, em 2013, houve um encontro em Aparecida com os “príncipes da Igreja”, como se dizia, incluindo os já aposentados e em idade avançada, como ele. Numa brecha para tietar o Sumo Pontífice, os eméritos não conseguiram chegar ao altar, limitados por dores físicas de toda ordem. Exceto um. “Tirei uma foto com papa”, gaba-se o colecionador de grandes e pequenos feitos, a maior parte trancafiada a chave. Vai levá-los consigo, quiçá num sábado.
Quem tem apartes com Fedalto costuma reparar na dicção clerical inconfundível – treinada ao longo de pelo menos 23 mil missas celebradas desde sua ordenação, em 1953. Outros se atêm aos olhos de azul cristalino, ou à disciplina monástica. Sobretudo, impressiona a memória digna de HAL, o computador de 2001... É uma força da natureza. “Recebi esse dom”, admite, ao falar da habilidade que costuma transformá-lo em alvo de admiração expressa. Destila datas, endereços, nomes e sobrenomes completos, passagens históricas de qualquer naipe – das guerras ao dia-mês-e-ano em que uma obscura paróquia de periferia foi criada. Não decepciona mesmo quando pede uma pausa para o download, dizendo-se “um pouco esquecido”. É como se em meio ao suspense transportasse a plateia para um quiz show vaticano.
Aos que o aplaudem pela performance, brinda com um episódio recorrente, “quase um trauma”, acontecida na meninice. Em 1940, aos 13 anos, ao deixar a Colônia Rebouças, Campo Largo, e ingressar no seminário diocesano, Pedro se viu em tranças com a língua portuguesa. Entre os seus falava um dialeto vêneto. Além das travas com o idioma, outra desvantagem: não vinha de um ambiente erudito. Filho mais velho de dona Corona e seu Giácomo, tinha teoria e prática na enxada. Suas especialidades se resumiam às lides do campo. O choque cultural veio sem misericórdia.
O seminário da Rua Jaime Reis – hoje a Cúria – não era apenas distante da colônia, era outro planeta. Ao oferecer estudos de altíssima qualidade, os institutos católicos da primeira metade do século passado pecavam por promover a competição em excesso. Procurava-se entre os candidatos a clérigos os de maior brilho intelectual, premiando-os, não raro, com temporadas de estudos em Roma. O guri de Rebouças ressentiu daquele clima de Jockey Club e avisou que queria voltar para casa. O pedido foi negado, mas a pressão não diminuiu. Para não fazer feio, Pedro se agarrou ao dicionário, o que não o impediu, certa feita, de trocar a palavra “doze” por “dose”. Perdeu pontos e guarda a correção até hoje em seu museu particular, passaporte da sua revanche.
Se os cálculos estiverem certos – e em se tratando de quem se trata, estão – apenas nos tempos de seminarista menor Pedro Antônio Marchetti Fedalto ganhou 38 condecorações. Numa dessas diplomações, ouviu pela primeira vez a profecia: “Pedro, você ainda vai ser bispo”. Não levou a sério, mas bem podia. Ordenado, virou uma espécie de garoto de ouro do arcebispo dom Manuel da Silveira D’Elboux, predileção que lhe impunha obrigações burocráticas na Mitra. Obedecia. Tinha ganas de ser o padre de Rebouças, mas em inícios da década de 1960 insistiram em lhe dar uma viagem – pelo mundo. Aceitou. Começou bem, por Nova York, partindo depois para a Europa, onde acompanhou como ouvinte as audiências do Vaticano II.
Foi quando Pedro, o menino que decorava, viu o mundo. Ao voltar, encontrava-se a anos luz da figura que trocava os “esses” e já se encontrava na mira da hierarquia. Convocaram-no para uma prova de conhecimentos reservada aos altos postos na cúpula. Era uma madureza sem fim. Não gabaritou, mas quase: tinha 44 anos e, como previam seus colegas, tornou-se bispo.
Dom Pedro Fedalto não foi biografado – nem deve, pois está vivo. Não e dado a papaguear sobre si, mas deixa uma pista, a quem interessar possa: é vacinado contra rótulos. Muitos teimam reduzi-lo a um conservador, que rezou terços e fez procissões em 1964, para conter os perigos dos comunistas. Uma versão local do irlandês Patrick Peyton (1909-1992). Criador da “Cruzada do Rosário em Família”, tinha o apelido de “padre de Hollywood” – apelido ganho por convencer astros do cinema a interpretarem, de graça, personagens bíblicos em longas-metragens. Pedro rezava o terço de Peyton e também falava de família, inclusive aos militares, sempre que precisava tirar do muro de farpas alguma jovem militante. “Ela é filha de boa gente católica”, ponderava diante dos fardados, em meio a longas vigílias nos quartéis. Sua missão voluntária – soltar jovens encrencados com a ditadura, assim como padres, detidos por se dedicar mais à práxis do que à piedade.
É quase impossível lhe arrancar confissões de santo Agostinho a esse respeito, mas é sabido de sua intrujice a favor do ex-preso político e hoje advogado Vitório Soratiuk, da jornalista Teresa Urban e outras meninas. Muitas gurias da “lista de Pedro” cumpriram pena em conventos, como o das irmãs vicentinas e das irmãs franciscanas de São José. Não foi milagre – foi ele, um sujeito a seu modo.
É capaz de falar com a perícia de um contador, por horas, sobre os cuidados que dedicou aos bens da arquidiocese. Na frase seguinte, transforma-se naquele que trouxe o incendiário dom Angélico Sândalo Bernardino para pregar retiros ao clero de sua arquidiocese. Que tornou pública sua afinidade com dom Hélder Câmara. Que convidou para vir até aqui, sem êxito, o radical dom Pedro Casaldáliga, bispo de Conceição de Araguaia (PA). Aos que perguntarem quem é Pedro Fedalto, afinal, resta dizer que é um pastor. É que mesmo recluso, debaixo do peso de quase um século nas costas, sente coceira quando lhe pedem que presida... uma pequena procissão na Colônia Rebouças. E lá se vai. Não à toa lhe doem tanto os pés – os pés dos que anunciam a paz. Está escrito.