| Foto: Arte: Felipe Lima

A foto que ilustra esta crônica é da minha mãe menininha. Achei-a no álbum alheio, pedi emprestado para escanear e jogar na rede. Adorei os modelitos. Fico pensando: será que ela queria ser como as duas senhoras ali detrás?

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Falo pela rede social com minha prima Solange. Ela mora desde guria nos Estados Unidos e me pede desculpas pelo português ruim. Depois pergunta se tenho fotos da nossa avó, Adelaide, pois quer mostrá-las aos dois filhos miúdos.

Lembro-lhe que a avó morreu em meio aos rigores do pós-Guerra, dias depois de um parto difícil. Tinha 28 anos. Diz-se que a única imagem que havia dela sumiu numa chuvarada. Restou a lembrança dos que a conheceram. Eles a retratam como mulher morena e bonita, que penteava os longos cabelos da filha Bibiana tendo como cenário a aldeia, as flores-do-espírito-santo e o Atlântico, dádivas de Portugal.

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Por minha conta e risco, aumento um pouco e digo que a vejo cantando fados – "de quem eu gosto, nem às paredes confesso...". E sou capaz de jurar que ela era a cara da Sophie Charlotte. Pois é, a memória anda de braço dado com a imaginação, como escreveu Bachelard.

Quando me dou conta, troquei dezenas de frases soltas com a prima, espalhando meias-verdades pela rede mundial de computadores. É tarde. Aviso-lhe que nossa antepassada era da família Pestana, o que nos torna legítimos herdeiros da cadeia de hotéis [kkkk]. Prometo-lhe enviar o que tenho de fotos antigas, para que possa mostrar aos seus o mundo em preto e branco do qual descendem, e adeus.

As relações na internet têm a espessura de um dedal. Mas por ironia nos permitem retomar práticas que foram atropeladas pela tirania da velocidade. Uma delas é folhear álbuns de retratos, o que fazíamos em tardes de visita a parentes, seguidas de chineques e fofocas. Hoje, nos frequentamos pouco, mas os álbuns, ufa, estão saindo da ditadura dos armários a chave e caindo no cotidiano virtual.

Menos mal. Agora tenho acesso à coleção de imagens de outra prima, a Linda, dona de um pequeno tesouro, digno da Foto Brasil. Não emprestava nem vendia. Mas deu de digitalizar seu acervo em capítulos, fazendo com que tias setentonas deixem de lado os bordados e se ponham a teclar com a fúria de colegiais. "Como é que eu fui parar aí dentro?", perguntam. "Olhe como a Fátima é igualzinha à Filomena", ouvi dia desses. Basta um "enter" para voltar 50 anos num minuto. Susan Sontag tinha razão. Cultuar fotografias é uma liturgia que praticamos para amansar o passado. Podemos fazer dele um filme de época, um conto de fadas, uma novelinha das seis. Um retrato, porém, também tem o poder de arrombar portas bem fechadas pelo esquecimento – e aí é que são elas.

Lembro do que me contou, em entrevista, o escritor gaúcho Moacyr Scliar, morto em 2011. Ao ver uma foto que lhe tiraram a esmo, deu-se conta de que tinha ficado a cara do pai, um judeu da Bessarábia que adorava contar histórias no Bonfim de Porto Alegre. Entrou em crise. A semelhança física lhe acordou outra parecença, cá dentro. Tinha escrito 70 livros, ganhado fama e tostões, mas no fundo tudo o que queria era ser igual ao pai – o falastrão bairro. Perdera-se do desejo, e agora?

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Anos atrás, tive outra prova dos elixires diabólicos da fotografia. Pedi aos alunos que fizessem uma leitura pública de uma foto de família. É divertido: as melhores são aquelas em que um espeto de costela "posa" junto com a parentada. Mas eis que alguém da turma mostrou o último instantâneo dos pais, antes da separação. Comoção. Solidários, os outros seguiram declarando suas mazelas juvenis, como se fossem sobreviventes das minas de carvão. Culpa da foto.

O sociólogo Pierre Bourdieu, talvez por isso, diz que fotografias são monumentos funerários aos quais visitamos de vez em quando, para chorar de novo e guardar a dor. Mas prefiro a versão pia do fotógrafo Boris Kossoy: fotos são como relicários. Por isso as emolduramos, prendemos com cantoneira e, agora, exibimos no Face, como se fossem suvenires do tempo das Cruzadas. Olhá-las é fazer uma "longa viagem de curta duração". Não há nada igual.

Bom, se algum dia a foto de minha avó cair na rede, aviso: fica tudo como está. Ilusão é de direito. Hei de postá-la. E ao contar que ela se foi tão jovem, deixando a filha aos prantos, comoverei a todos, que me seguirão com suas histórias de vidas breves, amores findos e costeladas inesquecíveis.