Imagine a cena. Num fim de tarde, a turma da academia de ginástica se acaba em cima de uma esteira para gastar calorias. Eis que chega Fernando Soares Ramos, 52 anos, com uma caixa de isopor alvíssima, coberta por um pano de prato parecido, calculo, aos usados na copa da rainha da Inglaterra. Pede licença, fidalgo, e mostra os brigadeiros feitos por sua mulher, Roseli Furmann, a Rose. A chance é de uma em mil, afinal as pessoas ali querem é emagrecer. E se trata de um ambulante vá saber a procedência do granulado. O vendedor não sucumbe ao pouco caso por trás dos supinos. Atesta a idoneidade da mercadoria. Fala bonito. Ele é o rei.
Rose conheceu Fernando quando ambos cursavam o pré-vestibular. Mal a viu, mandou uma cantada carioca à curitibana loura e treinada para não dar trela a estranhos: "De que constelação você veio?" Bem que ela tentou, mas não se largaram mais. Faz quase 25 anos. Nesse tempo todo a mulher nunca o viu voltar para casa com um brigadeiro encalhado. Obsessão?
Fosse hoje um piá, talvez Fernando estudasse numa sala para inclusão de hiperativos ou coisa assim. Mas, à época, ficou por isso mesmo. Garoto da classe média fluminense, foi criado no Posto 6 de Copacabana. O pai era advogado em Brasília. Um dos seus avôs, ninguém menos do que o finado Ruy Ramos, vulgo Cabeleira, deputado federal, mito do PTB, conselheiro de Getúlio Vargas, orador de bombachas, de quem Fernando herdou o vocabulário lustroso, mas não propriamente para a política.
Tinha o tal do bicho carpinteiro. Chegaram a levá-lo ao cardiologista, temendo que a ansiedade lhe desse um mal súbito. O médico receitou "gasto de energia", o que obedeceu passando a vender sanduíches naturais na praia. A mãe não se descabelou. E Fernando descobriu sua dupla vocação comerciante andarilho, função que lhe trouxe tantas alegrias quanto dores ciáticas, tratadas com Profenid e bolsa de água quente.
Alquebrado, conjuga a venda de doces com a função de inspetor de alunos numa escola estadual. Cuida da gurizada. Mas, no fim de semana, encaixota os brigadeiros e sai a pé por aí, à cata de seus aproximados 10 mil clientes. Da Ponte do Orleans, mira no horizonte e diz "vou até o Cavalo Babão". "Adoro olhar uma rua e pensar que chegarei lá no fim." Consome um tênis a cada 40 dias. Não abre mão do prazer de ver a freguesia fechar os olhos ao dar a primeira mordida nos brigadeiros. Há quem mande gratos bilhetinhos para Rose.
"Você me venceu", ouviu, certa vez, de um exigente Luiz Renato Ribas, cinéfilo, publicitário, historiador das araucárias. Não foi o único. Vendeu quitutes para o nada doce senador Roberto Requião. Não lhe escaparam também políticos mais cordatos, como o Doutor Rosinha e o vereador Pedro Paulo. Sua lista de clientes ilustres e benfeitores não caberia nesta página. "Põe aí os Rego Almeida, o Marcelo Vaz, o pessoal dos salões de beleza..." São eles os propagandistas, quando não os defensores de Fernando em caso de algum segurança partir para a ignorância.
Já levou muito "não", é verdade. Mas desenvolveu suas técnicas. Uma diz que quem o põe para correr hoje pode se entregar à luxúria de um brigadeiro amanhã. O brigadeiro é um prato que se come frio. A outra diz que de pouco vale quem deixa baixo-astral de troco. Melhor se ocupar de quem lhe retribui com coração de bombom, de recheios, de uvas mergulhadas em cremes. Dá tão certo que, a exemplo do pipoqueiro Valdir da Praça Tiradentes, deu palestras sobre vendas e relacionamento com o cliente. Nada que o amarre, é verdade. Pé na rua 270 quadras o esperam.
Bom, tem aquela hora em que o vendedor precisa sossegar na casa "feita com doce", construída em parceria com a mulher, no Jardim Gabineto. Marido por perto, a divertida Rose ergue as mãos para o céu: "É difícil". Só uma coisa desliga o rei Fernando ler. Acaba de "viajar" por A montanha mágica, de Thomas Mann. Deu suas "pernadas" pela obra de Mark Twain, Hemingway, Steinbeck e Kazantzakis. São sua inspiração para correr mundos e gentes, às quais distribui os melhores açúcares, com afeto. Eis um nobre.
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