Se perguntarem ao curitibano Maurício Decker, 39 anos, o que ele é, dirá: “Sou um editor”. E um senhor editor, com extensa folha corrida. Mas caso alguém se dê ao trabalho de contabilizar os quilômetros que esse cidadão rodou, replicará dizendo que não: “Ele é um viajante”. Um viajante solitário, vacinado contra a “industrialização do prazer” promovida pelo setor de turismo e do lazer.
O editor nasceu de parto natural. Filho de pais da área de Letras, cresceu entre livros. Aos 16, “comecei a comê-los”. Aos 18, desossou Dom Quixote, de Cervantes, a obra de sua vida. Apetite não lhe faltou. Daí falar de Roberto Bolaño, Ernesto Sabato ou Guimarães Rosa como se fossem seus vizinhos no Jardim Botânico, onde mora, tendo aos pés paralelepípedos e a Serra do Mar ao alcance da vista.
Quanto ao viajante, impôs-se qual uma paixão distraída. Nasceu do gosto em girar o globo terrestre, da mania de fazer listas com os países que haveria de conhecer. Em janeiro deste ano, o menino de um dia venceu o adulto de agora. Livrou-se de um emprego e se mandou pelas costas uruguaias e argentinas, até chegar à Patagônia. Foram 3 mil quilômetros, ele e ela, sua bicicleta Cannondale, sós, ao sabor do vento e da caridade de estranhos.
Maurício tinha 5 anos quando um tio lhe apresentou a luxúria de viajar. Aos 9, pedalava 70 quilômetros na bicicleta do avô, desafiando o pó das estradinhas de Atalanta (SC). Aos 11, ganhou sua primeira bike – uma BMX, em sorteio promovido por um shopping. Para desespero da mãe, Dilza, saiu do Batel para visitar um amigo, no Pilarzinho. A essa altura, era um guri com os pés em dois mundos. Colecionava mapas e livros. Jovem, fazia Geografia, curso trocado quase no fim por uma cadeira na faculdade de Letras. Viveria de ler. Viajaria nos fins de semana – e estamos conversados.
Mas as viagens, ah, insistiam. Montanhas e chapadas. Interiores da Bolívia e do Peru. Lugares escondidos que fazem os guias de turismo se benzer. Sujeito dado a amizades, começa a ter gosto em estar só, uma marca da alma. E a alimentar rituais – um Montaigne tropical. Em viagem, “faço a oração diária de escrever”. Sempre à noite. Os serões lhe renderam material de sobra para, em vez de editar, ser editado (leia abaixo uma de suas crônicas). Não mostrava a ninguém, até arriscar e ter um conto publicado numa coletânea na Festa Literária de Paraty, a Flip – prosa seguida de elogios de Moacyr Scliar e Fernando Morais.
Quanto à maratona deste ano, nasceu da coceira. Montou um roteiro, se não o mais radical, o mais poético. Sairia da Reserva do Taim, no Rio Grande do Sul, para ter com os 500 mil pinguins de Punta Tombo, com as baleias devorando filhotes de leões-marinhos na Península Valdés. Desejava a Patagônia, e a queria à moda National Geographic. Dois meses e diárias equivalentes a R$ 30 seriam o suficiente para cruzar sete desertos. Foi. Levou 40 quilos de bagagem, incluindo uma barraca minúscula, sua casa; e um notebook, sua extensão. Celular, apenas como despertador. O resto seria ao acaso, como já provara de outras feitas. Viajar é também impreciso.
Acolhemos o viajante porque gostaríamos de ser como eles
Pedalou algo como 100 quilômetros de manhã à noite, oito-dez-onze horas seguidas. Nas rotinas, montagem e desmontagem contínuas de sua nave espacial. Olhos atentos, visão periférica afiada para desviar de cobras e escorpiões. “Não se pode errar.”
Com perdão ao dualismo medieval, se é o atleta Maurício – um sortudo que não sabe o que é uma farmácia – quem vence às pedaladas as milhas que o separam do Fim do Mundo, é o Maurício leitor – de Cervantes, Victor Hugo, Melville, Joyce e Yourcenar – quem se senta à mesa com os quaisquer que encontra pelo caminho. Nele, todas as teorias sobre o leitor literário perdem a impostação e ganham cabeça, tronco e membros: em cada estranho ele viu uma ficção de beira de estrada.
No Brasil, ganha hospedagem do artista recluso Hamílton Coelho. Num ponto qualquer do Uruguai, bebe com um amigo do ex-presidente José Mujica. Numa reserva, guardas lhe permitem dormir entre matos e bichos. Um qualquer se vira em mecânico e lhe auxilia na troca de pneus. Outro lhe presenteia com uma jaqueta de frio. Oferecem-lhe cama, mesa e palavra. “Relindo” (trilegal), repetiam, quando contava o que o trazia tão longe. “Esses desconhecidos foram a minha equipe de expedição. Me ajudaram a encontrar o cara que eu era e nem lembrava mais.”
Ponho-me no lugar dos anônimos que encontrou, pois é essa a tarefa do repórter. Concluo que acolhemos o viajante porque gostaríamos de ser como eles. O copo de água que lhe damos, a fruta e o pão, a noite em boas cobertas estão ali como um pedido, não como oferta: queremos que leve algo de nós para as divisas que o chamam. Quem fica sabe que uma voz conduz aquele que vai. Também a ouvimos, mas não entendemos o que ela diz.