| Foto: Foto: Ivonaldo Alexandre/Gazeta do Povo / Arte: Felipe Lima

Se perguntarem ao curitibano Maurício Decker, 39 anos, o que ele é, dirá: “Sou um editor”. E um senhor editor, com extensa folha corrida. Mas caso alguém se dê ao trabalho de contabilizar os quilômetros que esse cidadão rodou, replicará dizendo que não: “Ele é um viajante”. Um viajante solitário, vacinado contra a “industrialização do prazer” promovida pelo setor de turismo e do lazer.

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O editor nasceu de parto natural. Filho de pais da área de Letras, cresceu entre livros. Aos 16, “comecei a comê-los”. Aos 18, desossou Dom Quixote, de Cervantes, a obra de sua vida. Apetite não lhe faltou. Daí falar de Roberto Bolaño, Ernesto Sabato ou Guimarães Rosa como se fossem seus vizinhos no Jardim Botânico, onde mora, tendo aos pés paralelepípedos e a Serra do Mar ao alcance da vista.

Quanto ao viajante, impôs-se qual uma paixão distraída. Nasceu do gosto em girar o globo terrestre, da mania de fazer listas com os países que haveria de conhecer. Em janeiro deste ano, o menino de um dia venceu o adulto de agora. Livrou-se de um emprego e se mandou pelas costas uruguaias e argentinas, até chegar à Patagônia. Foram 3 mil quilômetros, ele e ela, sua bicicleta Cannondale, sós, ao sabor do vento e da caridade de estranhos.

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Maurício tinha 5 anos quando um tio lhe apresentou a luxúria de viajar. Aos 9, pedalava 70 quilômetros na bicicleta do avô, desafiando o pó das estradinhas de Atalanta (SC). Aos 11, ganhou sua primeira bike – uma BMX, em sorteio promovido por um shopping. Para desespero da mãe, Dilza, saiu do Batel para visitar um amigo, no Pilarzinho. A essa altura, era um guri com os pés em dois mundos. Colecionava mapas e livros. Jovem, fazia Geografia, curso trocado quase no fim por uma cadeira na faculdade de Letras. Viveria de ler. Viajaria nos fins de semana – e estamos conversados.

Mas as viagens, ah, insistiam. Montanhas e chapadas. Interiores da Bolívia e do Peru. Lugares escondidos que fazem os guias de turismo se benzer. Sujeito dado a amizades, começa a ter gosto em estar só, uma marca da alma. E a alimentar rituais – um Montaigne tropical. Em viagem, “faço a oração diária de escrever”. Sempre à noite. Os serões lhe renderam material de sobra para, em vez de editar, ser editado (leia abaixo uma de suas crônicas). Não mostrava a ninguém, até arriscar e ter um conto publicado numa coletânea na Festa Literária de Paraty, a Flip – prosa seguida de elogios de Moacyr Scliar e Fernando Morais.

Quanto à maratona deste ano, nasceu da coceira. Montou um roteiro, se não o mais radical, o mais poético. Sairia da Reserva do Taim, no Rio Grande do Sul, para ter com os 500 mil pinguins de Punta Tombo, com as baleias devorando filhotes de leões-marinhos na Península Valdés. Desejava a Patagônia, e a queria à moda National Geographic. Dois meses e diárias equivalentes a R$ 30 seriam o suficiente para cruzar sete desertos. Foi. Levou 40 quilos de bagagem, incluindo uma barraca minúscula, sua casa; e um notebook, sua extensão. Celular, apenas como despertador. O resto seria ao acaso, como já provara de outras feitas. Viajar é também impreciso.

Acolhemos o viajante porque gostaríamos de ser como eles

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Pedalou algo como 100 quilômetros de manhã à noite, oito-dez-onze horas seguidas. Nas rotinas, montagem e desmontagem contínuas de sua nave espacial. Olhos atentos, visão periférica afiada para desviar de cobras e escorpiões. “Não se pode errar.”

Com perdão ao dualismo medieval, se é o atleta Maurício – um sortudo que não sabe o que é uma farmácia – quem vence às pedaladas as milhas que o separam do Fim do Mundo, é o Maurício leitor – de Cervantes, Victor Hugo, Melville, Joyce e Yourcenar – quem se senta à mesa com os quaisquer que encontra pelo caminho. Nele, todas as teorias sobre o leitor literário perdem a impostação e ganham cabeça, tronco e membros: em cada estranho ele viu uma ficção de beira de estrada.

No Brasil, ganha hospedagem do artista recluso Hamílton Coelho. Num ponto qualquer do Uruguai, bebe com um amigo do ex-presidente José Mujica. Numa reserva, guardas lhe permitem dormir entre matos e bichos. Um qualquer se vira em mecânico e lhe auxilia na troca de pneus. Outro lhe presenteia com uma jaqueta de frio. Oferecem-lhe cama, mesa e palavra. “Relindo” (trilegal), repetiam, quando contava o que o trazia tão longe. “Esses desconhecidos foram a minha equipe de expedição. Me ajudaram a encontrar o cara que eu era e nem lembrava mais.”

Ponho-me no lugar dos anônimos que encontrou, pois é essa a tarefa do repórter. Concluo que acolhemos o viajante porque gostaríamos de ser como eles. O copo de água que lhe damos, a fruta e o pão, a noite em boas cobertas estão ali como um pedido, não como oferta: queremos que leve algo de nós para as divisas que o chamam. Quem fica sabe que uma voz conduz aquele que vai. Também a ouvimos, mas não entendemos o que ela diz.

Série “Ventos patagônicos”, registros de um viajante de bicicleta.
Série “Ventos patagônicos”, registros de um viajante de bicicleta.
Série “Ventos patagônicos”, registros de um viajante de bicicleta.
Série “Ventos patagônicos”, registros de um viajante de bicicleta.
Chegando à Patagônia. Nos detalhes, a bicicleta Cannondale.
Chegando à Patagônia. Nos detalhes, a bicicleta Cannondale.
Chegando à Patagônia. Nos detalhes, a bicicleta Cannondale.
Chegando à Patagônia. Nos detalhes, a bicicleta Cannondale.
Chegando à Patagônia. Nos detalhes, a bicicleta Cannondale.
A caminha de Punta Tombo (Argentina). Vista das estradas arenosas, que consomem o dobro de tempo e de pedaladas.
Em Punta Tombo, detalhe da pequena barraca usada pelo viajante.
Em Punta Tombo (Argentina).
Em Punta Tombo (Argentina). Reserva de pinguins.
Em Punta Tombo (Argentina). Reserva de pinguins.

Relato de viagem

Pedalar até a Patagônia não difere em nada da vida da qualquer um, ou de uma partida de pôquer. Há dias em que você desperta e tudo sai bem. Até aquele problema complicado se resolve sozinho. Há dias em que você já desperta batendo com o dedinho do pé no pé da cama, e dali para a frente tudo não presta, é só pepino. Há dias em que tudo começa bem e de repente vira de cabeça para baixo. Há dias em que tudo começa mal e termina bem. E há dias loucos, nos quais você se pergunta o que realmente aconteceu.

Bem, ao fim do melhor dia de pedalada de toda a viagem, que foi ontem, fui deitar em minha querida barraca, meu hotel de cinco bilhões de estrelas, após o fugaz, porém rico, jantar de quinua com ervas finas e amêndoas, tendo como sobremesa nozes com mel e chocolate puro. Pouco antes de me recolher, um ciclista brasileiro, que estava no hotel do posto, se aproxima. Disse que viu minha vestimenta de ciclista e resolveu checar de onde vinha, para onde ia. Era Luiz Arthur, que vinha de Curitiba, e ia para Ushuaia, mas fazia um esquema diferente, era adepto dos randonneurs, nome de origem francesa para uma modalidade que contempla a pedalada de longa distância. Luiz estava fazendo 200 km por dia, com metade da carga que levo, e parando para dormir e comer em hotéis. Era amigo de outro sujeito que conheci en passant, que fez Curitiba-Ushuaia no mesmo esquema, em apenas 28 dias. São viagens diferentes. Enfim, conversamos, e nos despedimos. Pedi um favor para o companheiro, que havia comentado que costumava sair bem cedo, por volta das 6 da manhã. Que me acordasse quando estivesse saindo, pois havia me esquecido de retirar meu celular (mais conhecido aqui como apenas despertador) de um esconderijo secreto nos alforjes, tão secreto que me seria impossível encontrá-lo dentro de meu hotel de cinco bilhões de estrelas e cinco polegadas quadradas. Combinado.

Curiosamente, demorei muito para dormir, coisa que não acontece, pois sempre durmo bem em minha barraca. Como não costumo lutar contra insônias (que são raríssimas em minha vida), verdadeiro convite a pensar, propus uma noite de rock progressivo. Desfilaram por meus ouvidos meus queridos amigos Peter Gabriel, Sting, Fish, Marillion, Rush, Yes, Pink Floyd, King Crimson, Eric Clapton, Genesis, Led Zeppelin... Após eles, deixei os grilos cantarem um pouco de seu som progressivo. As estrelas lá no alto, desfilando pela janelinha de tela da entrada da barraca, que sempre deixo aberta, para respirar a noite e ventilar, me divertindo com os mosquitos que ficam loucos querendo entrar, sem conseguir. De repente, apaguei. E tão de repente quanto, meia hora depois, despertei com um ruído qualquer e não consegui dormir mais... Carajo...

Não sei a que horas consegui dormir de novo, só sei que demorou. 6h30, sou despertado pelo companheiro Luiz. Um cavalheiro, que me presenteou com duas medialunas do hotel, os croissants deles aqui, como presente para o café da manhã. Agradeci o presente e o serviço pontual de despertador, e nos despedimos, desejando boa sorte um ao outro. Por menos que tivesse dormido, sentia-me bem. Seguramente era um desses dias em que tudo começa bem.

Arrumei tudo em uma hora, tomei meu café da manhã, enchi as garrafas de água (agora já levo 7 litros), e parti. Dia esplêndido, parcialmente nublado, levemente fresco, com vento a favor, e um vento de través, vindo da esquerda, que manteria as águas frescas, tudo perfeito para uma longa pedalada.

Durante uma hora ininterrupta, a bicicleta corria a 25 km/h, velocidade perfeita. Oras, a essa velocidade, em 4 horas você percorre 100 km. O vento refrescava muito, permitindo uma pedalada sem suor. A água estava fresquinha.

Eis que... a estrada faz uma brusca curva para a esquerda e... Sabe aquele vento de través? Ficou de frente. Sabe aqueles 25 km/h? Tornaram-se 15 km/h. E aumentando de intensidade a cada hora... fazendo a bike baixar para 14 km/h, depois 13. Acontece que o vento de través não sumiu, mas virou uma combinação de vento contrário como través com o dobro da intensidade, atirando a bike para a esquerda a todo o instante. Não bastasse isso, os caminhões que passavam criavam um vácuo que puxava a bike para a estrada, causando um risco bastante considerável. Sem falar que, com vento contrário, não se escuta o caminhão que vem rugindo atrás. Com o que resolvi olhar para trás a cada minuto, parando totalmente a bike quando um caminhão se aproximava, por questão de segurança. Para não dizer que exagero, as aves voavam sobre a estrada sem sair do lugar. Tentavam atravessá-la de um lado a outro, mas ficavam paradas sobre a estrada, batendo as asas inutilmente contra o vento de través.

Aquela reta dos demônios, de frente para o vento, durou milhões de anos. Mas eu tinha esperança de que uma nova curva para a direita me salvaria do inferno. E então... Voilà! A curva para a direita. Que durou exatos 500 metros... Puta merda! Alegria de pobre... De miserável, para dizer a verdade, pois após os 500 metros a nova curva para a esquerda era mais abrupta que a anterior... Mais alguns milhões de anos pelejando contra o desgraçado del viento, que ia aumentando, ganhando uma face, como que me dizendo: “te olvides chico, tu no vay a lugar ninguno hoy...

Depois da reta interminável do satanás, nova curva à direita, bem mais abrupta, ou seja, me colocando com o vento pelas costas novamente. Vitória!

Por sorte cheguei a um pequeno povoado, cumprindo meus 50 km da manhã em 3 horas e meia de pugilato insano.

Bem... nessas paradas sempre surgem os tipos curiosos, as perguntas. Entabulo conversa com dois caras em uma mesa ao lado. Era um motorista de caminhão e seu jovem ajudante. Luciano o ajudante, Luiz o motorista. Segundo Luiz do dia.

Quando lhe perguntei sobre a direção da estrada adiante, a resposta não poderia ser mais desanimadora. Após 10 km, a estrada faria uma curva brusca para a esquerda novamente, até o destino final, a 50 km de onde estávamos... Com o detalhe de umas pequenas subidas... Era demais para mim. Iria armar minha barraca ali mesmo e fechar o dia com meus pobres 50 km pedalados. Ok, viento de mierda... Usted ha vencido, cabrón del carajo de la puta madre!

Não sei que cara devo ter feito, descabelado pelo vento. Mas o fato é que, por mais feia que tenha sido, deve ter tocado em algum ponto do coração do motorista de caminhão, que se compadeceu e me fez a proposta indecente. Se eu quisesse ele me levava até Tres Arroyos, meu destino do dia, que era para onde ele ia. O caminhão estava vazio.

Se você tivesse acabado de escapar de um naufrágio, nadando contra ondas terríveis, e passasse um barco perguntando se, por acaso, você não gostaria de subir a bordo, você negaria o convite, agradecendo complacentemente e dizendo preferir nadar? Nem eu.

E lá fui eu, feliz da vida, na cabine do caminhãozinho. Da janela, observava o desgraçado lá fora. Pode soprar e soprar e soprar, mas minha alma você não vai derrubar!

E assim cheguei a Tres Arroyos, às 15 horas. Uma cidadezinha muito bonitinha, florida, com edifícios antigos em estilo espanhol. A cidade parecia fantasma. Não havia ninguém nas ruas. Assustador. Consegui um hotel em conta. Perguntei o que se passava. Nada. Era a siesta. Às 17 horas tudo voltava ao normal. Tomei meu banho e saí às 17 horas. Tudo realmente voltava ao normal. As calçadas cheias de chicas guapas... E o vento ainda rugindo. Mas agora, levantando algumas saias... totalmente a meu favor...

Confesso que roubei. Mas pedalei muito mais de 50 km em Buenos Aires. Assim, no pôquer da estrada para a Patagônia, saí com dois Luizes e pus o vento fora do jogo.

Foi um daqueles dias loucos. São dessas coisas que guardamos até a morte, ou até que o Alzheimer nos alcance... (Espero que esse alemão filho da puta, que varre nossa memória, não tenha parentesco com o vento!)

Foi um daqueles dias que não sabemos muito bem como definir. Não importa. Não é para ser definido. É para ser infinito...

(Tres Arroyos, Argentina, 28 de janeiro de 2015)

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