Ondina Violani avisa de pronto não ter "quase nada" a dizer sobre seus 73 anos de matrimônio. A vida seguiu como um rio depois que ela e Pedro se encontraram em alguma página da história. O que se há de dizer? Casaram-se em 1936, quando Hitler fazia aliança com Mussolini, Eduardo VIII renunciava ao trono da Inglaterra e Chaplin filmava Tempos Modernos. O dirigível, supimpa, estava para sobrevoar os céus de Curitiba.
Recém-casada, soube que vigorava no país uma Carta Constitucional cujo apelido soava como uma homenagem à vizinha de baixo: "A Polaca". Não era. Restou aos pombinhos sobreviver ao Estado Novo de mãos dadas, ao som de um fox-trot qualquer. E cá entre nós, nem Vargas nem nada: o maior problema da guria Ondina foi ter de morar com a sogra, uma calabresa com pimenta à moda. "Cortei um 12."
No mais, poucas agruras. Uma vez, com a Segunda Guerra a caminho e o abastecimento em crise, teve de usar sal em vez de açúcar no bolo de aniversário de um dos piás. E bem lembra que Pedro a proibiu de dançar tanto ela gostava. O resto passou rápido como um fritar de ovos. Tiveram três filhos Pedro, Dante, Roseli , comiam maionese aos domingos e foram mais de uma vez ao Cine Avenida assistir à E o vento levou, lará-lará, o filme da vida dela. Pedro e Ondina, Rett e Scarlet.
A fazenda Tara do casal era um terreno na Avenida Nossa Senhora Aparecida, bairro Seminário, comprado nos idos de 1945. Na casa dos Violani, luz instalada não tinha não. Gasolina, então! O doutor Felisberto Parracha visitava de moto a pequena Roseli para tratá-la, creiam, com terebentina. Naquela época, Maringá nem tinha sido fundada. Os bondes do Portão circulavam pela República. E Curitiba tinha pouco mais de 140 mil habitantes menos do que a CIC de hoje em dia. "Acontecia quase nada, quase nada", repete Ondina.
Os Violani já somavam mais de 30 primaveras juntos quando Vargas saiu da vida para entrar na história. Passavam dos 40 no dia em que JK inaugurou Brasília. Mas longe deles deslumbres bossa-novistas. O que os deixava nas nuvens era ter um reluzente Aero Willis na garagem e na sala uma TV preto-e-branco, comprada na loja da Procopiak, "sem que o Pedro soubesse." Ele ainda ri do jeito dela.
No mais, estavam madurões quando veio o chá-chá-chá, a revolução sexual e a pílula. Na casa do Seminário, decerto se sabia mais da morte de Kennedy em Dallas do que do suicídio de Bakun no Juvevê. Ouvia-se por lá Geraldo Vandré, com aquele vozeirão de padre de procissão. Mas não se discutia se o melhor era o Fino da Bossa ou a Jovem Guarda, "Sabiá" ou "Caminhando e Cantando". Pedro e Dante, vai ver, brincavam de trava-língua no quintal: "Você sabia que o sabiá sabia assobiar?"
Naquelas bandas, a ditadura militar foi vista da porta da cozinha, assim como os embalos de sábado à noite e todas as febres das décadas que vieram. Faça as contas: no dia em que Tancredo Neves morreu, em 1985, os dois tinham quase a idade do falecido e como qualquer um, devem ter achado estranhíssima a versão da Fafá de Belém para o Hino Nacional. Pedro e Ondina são como eu e você. Ou quase. Na virada do milênio, passavam dos 80. E o vento não os tinha levado.
"Foi assim"
Ondina ficou órfã de pai ainda menina e teve de trabalhar fora, o que a obrigava a cruzar todos os dias a Praça Tiradentes. Era ali que Pedro funcionário da Loja Goudart a via passar, tendo a catedral como paisagem. "Eu a achava engraçadinha". Um dia, criou coragem e a seguiu escadaria do emprego acima. Levou um sabão. "Conversar aqui, na escada? Não, senhor. Vamos na esquina." E foi numa esquina talvez a da Monsenhor Celso, talvez a da Marechal, onde tudo começou. "Não foi difícil", ele é quem diz.
No ano de namoro, Pedro ficava na rua, de frente para a janela da casa dela, na Rua 24 de Maio. Ondina no parapeito, horas contadas. Casaram-se numa cerimônia simples, na Gruta Nossa Senhora de Lourdes do Bom Jesus. Era julho, fazia frio. As núpcias seriam na Ilha do Mel, mas como choveu muito, contentaram-se com Paranaguá.
Ondina ajudou Pedro na fábrica de talco. Pedro passou sete décadas degustando o macarrão feito pela esposa. Hoje, ela sabe de cor o número de telefones dos médicos. Ele adora passar temporadas em Guaratuba e agora diz que gosta de dançar. Às vezes, ficam parados, um olhando para o outro, sem nada para dizer. Nessas horas, Ondina, 93 anos, liga a televisão. "Ainda bem que a TV fala." Pedro, 95 anos, ri. Ela é cheia de graça. The end.
José Carlos Fernandes é jornalista
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