Luís Teixeira, 51 anos, é psicólogo, ator, pesquisador, ativista cultural e uma prova de que a simpatia não está em baixa, como se alardeia. Sobretudo, é um fino observador. Numa de suas idas aos arrabaldes de Curitiba – onde desenvolve projetos de arte educação – saiu-se com uma frase digna de um de seus gurus, o poeta Manoel de Barros: “As crianças de periferia são como aquele matinho que cresce espremido, no meio do concreto.”
Referia-se ao sem número de carros batendo pino, à metragem infinita de fios de alta tensão – emoldurando quilômetros de contornos rodoviários –, aos incontáveis conjuntinhos habitacionais e a como, mesmo com tudo contra, ainda se pode ver por lá um piá soltando pipa, entregue às horas perdidas.
Pois a observação de Luís virou um desejo e o desejo uma exposição capaz de emocionar até o mais infame dos congressistas. Chama-se Memórias do Quintal e encerra sua temporada no hall da Biblioteca Pública do Paraná, depois de passar por meia dúzia de escolas públicas da Zona Sul [“Joana Raksa”, “Dona Pompília”, “Helena Kolody”...]. As imagens têm a assinatura de um bamba, o fotógrafo Guilherme Pupo, 43, com pesquisa de Teixeira e de sua mulher, a também arte-educadora e atriz Adriane Havro, 47. Ambos são idealizadores do escritório criativo “Malasartes – educação sensível”.
Os autores calculam terem ido 15-20 vezes ao que a gente chama de o bairro mais longe da capital, o labiríntico Tatuquara, e a suas redondezas – conhecidas da maioria apenas no letreiro dos ônibus. Visitaram ocupações irregulares, entraram em ruelas, agacharam quais caboclos nos tais quintais que dão nome à mostra, para uma prosa besta com o dono da casa. Ao contrário do que pode parecer, não estavam lá para salvar do desaparecimento diversões como o jogo de bolinhas de gude, bete ombro, pula cela ou a amarelinha. E esse é o barato.
Tão bom quanto a coleção de imagens, são as histórias dos pesquisadores, em busca dos pais das crianças
Faz uma data que Luís e Adriane se interessam por folguedos que deixam os corpos contentes. Na linguagem acadêmica, estudam a ludicidade. Querem saber como algumas tradições são repassadas, não raro sem fricotes: “Certas brincadeiras aconteceriam sem ninguém ensinar. Ponha uma criança perto de uma poça de água para ver. Ela vai pular, mesmo que nunca tenha visto alguém fazer igual”, desafia a educadora. A imagem clicada por Pupo, dos dois guris fazendo “estrela” – aquele misto de pirueta com bananeira que atenta contra a espinha e o juízo – resume a ópera. Só com os nervos anestesiados pelas enzimas da alegria para se arriscar. A dupla podia fazer participação especial no show do rapper Criolo, sinônimo de corpo lúdico, que canta e que dança.
Foi com essa pauta na cabeça que a equipe da Malasartes se pôs a observar os camicases que descem a ladeira a bordo de duas tábuas pregadas, conhecidas como carrinho de rolimã. O sistema de freios, sabem os covardes, sempre atentos, é um milagre da técnica e depende de um crédito da providência divina. A propósito: colocando álcool nas rodinhas, solta faísca, garantia de que efeitos especiais. Se à noite, show, de humilhar qualquer pirotecnia de arena country.
A conclusão é que todos aqueles folguedos que pareciam conversa saudosa da velha Filó sobrevivem nas periferias, mas nem sempre estão ao alcance da vista. Às vezes, a trave do campo de futebol está lá, mas sem viva alma por perto. De repente, surge... Lembra a cena final do incrível Entre os muros da escola, de Laurent Cantet, quando depois de muita troca de desaforos, professores e alunos batem uma bolinha no pátio, restabelecendo a moralidade.
Na prática, uma vez encontrado um grupo de pelada ou de meninas fazendo “jogo de mão”, foi preciso puxar papo, ganhar confiança, de modo a garantir a espontaneidade da foto. Memórias do Quintal não tem imagem posada, mais uma prova de que os fotógrafos, lá pelas tantas da tarefa, conseguem ficar invisíveis, como apregoa Sebastião Salgado, para espanto geral.
Tão bom quanto a coleção de imagens – impressas em panos transparentes –, são as histórias de maratona dos pesquisadores, em busca dos pais das crianças. Ouviam coisas assim: “A mãe de fulana mora lá embaixo, passando aquele mato, subindo a rua, na terceira casa dos fundos, depois do salão da Suzy”... [rubrica: com a entonação “lááááá´”] Do que se deduz que os pequenos ainda brincam soltos, muitos são olhados por vizinhos e formam uma rede de amizades de provocar beiço de choro na turma dos bocejantes condomínios horizontais. Os pés sujinhos de terra [como diz o povo do Palavra Cantada] longe de provocar pena ou revolta, funcionam como uma espécie Índice de Felicidade Bruta, essa boa ideia que custamos em agarrar. “A criança aprende pelo movimento” – avisam Teixeira & Havro. Anotem.
Claro, nem Luís, nem Adriane, nem Guilherme nem ninguém com os parafusos minimamente apertados desconhece que vida de criança da perifa não é brincadeira de roda. Mas não há por que diabos reduzir a petizada a reféns da violência, da distância ou da habitação precária, como se não houvesse nada além do horizonte. Pensar assim faria de nós insetos em volta da lâmpada. O trio afirma, sem rebuços, que a vida em estado bruto é um parto, mas não comanda a festa de todo. A fantasia pode dar de dez a zero na realidade. O menino e a menina que pulam corda contam uma história boa para si mesmo. A gente devia fazer parecido.
“Sei que todo mundo diz isso, mas assino embaixo: cada criança é um projeto de humanidade”, pincela Adriane Havro. Vale para todas as outras, é claro, mas até onde se tem notícia são as dos confins da Caximba e do Rio Bonito que estão com o rolo de fio na mão e a pipa no ar. É o tal do matinho que cresce no meio das pedras. Fundam em qualquer 30 metros quadrados de chão batido uma república de prazer, essa palavra que nos mete medo.
*** Se permitem, um pouco de poesia contra as sombras desta Sexta-Feira 13: “Passava os dias ali, quieto, no meio das coisas miúdas. E me encantei”. É do Manoel de Barros, assim como essa: “Quando eu crescer quero me tornar criança”.
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