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 | Foto: Daniel Derevecki / Arte: Felipe Lima
| Foto: Foto: Daniel Derevecki / Arte: Felipe Lima

Mal bateu a porta do táxi e o comerciante Antônio Garcia Ma­­tias, 73 anos, foi as­­saltado por uma voz de ressaca a cantar o fado. "Estranha forma de vida..." Não se tratava da fadista Dulce Pontes, sua preferida, mas da sertaneja Roberta Mi­­ran­­da. Rendeu-se. Ouviu "Ai, Mou­­ra­­ria", que sabe de cor desde miú­­­­do, e desacatos como "Nem às pa­­redes confesso". Em troco pelo regalo, ofereceu conversa boa até chegar ao Centro, onde há 34 anos interpreta o papel de "português da padaria".

Não fazia parte dos planos de Garcia entrar para a casta dos farinhas, mas quis o destino. Em 1956, contava 19 primaveras, estava órfão, cuidava de oliveiras em Montes da Senhora – uma aldeia de 900 patrícios – e tinha um problema tipicamente lusitano: ou servia o exército na Ín­­dia ou descobria o Brasil. Fi­­cou com o Brasil, onde se tornou cai­­xeiro-viajante. Descia das Minas Gerais quando encontrou uma terra de araucárias, na qual um frio que gelava da alma à ponta do nariz lembrou-lhe Portugal. Ti­­nha, ó pá, chegado em casa.

O moço não custou a encontrar aqui conterrâneos e palpites: "Pequeno, abras uma padaria". Resistiu como uma azinheira, mantendo-se livre da tirania do balcão. Até que saiu aos seus. Chamou o cunhado Joaquim Francisco à sociedade e fez de um sobrado da Rua José Loureiro a panificadora "A Camponesa". Era 1976, tinha 39 anos e casamento marcado com Ana Maria.

Seria um negócio como tantos soubesse o portuga apurar a massa, como se espera dos súditos de Isabel, a Rainha Santa, pa­­droeira da mais célebre linhagem de padeiros do planeta. Ai, Jesus. Mas em vez de rezar novenas, chamou Eros Loyola, um ex­­pert em panificação, e teve com ele. Aprendido o ofício, meteu o bedelho nas receitas, deitando ao lixo os emulsificantes usados para fazer as bisnagas crescerem feito batatas agrotóxicas.

Há indícios de que a rebeldia culinária de Garcia tenha reinventado uma iguaria curitibana – o "pão bundinha", como nosso pão d’água acabou batizado. Sem a química que fazia desses pãezinhos uma homenagem às vedetes do teatro rebolation, o produto diminuiu umas polegadas e ganhou em sabor. Bem merecia um monumento à porta da cidade.

Do que se sabe, a firma Matias & Francisco expede algo como 7 mil bundinhas/dia. Quanto a Garcia, o português que não queria ser padeiro, ganhou o necessário para descobrir o Brasil e todas as Índias, a seu modo. Ele cuida do negócio, mas também navega a bordo de jornais, revistas, livros e filmes, apetrechos de sua estranha forma de vida. Eis o homem.

O pai de Garcia vivera longo autoexílio na Argentina, onde teria conhecido o tango, os cafés e as letras. De volta à aldeia, en­­con­­trou um Portugal pobre e servil. Tudo indica que se curava da saudade devorando as páginas do jornal O Século. Foi num desses impressos que o filho viu a foto da bomba de Hiroshima e sentiu ganas de saber tudo o que não ouvira na escola aldeã.

Não se sabe ao certo, mas dé­­cadas depois, entre uma fornada e outra acordou o garoto que bisbilhotava jornais. Tinha sido o giramundo que sonhara; o pa­­deiro que lhe pediram; mas queria mesmo era ser leitor de O Sé­­culo. Ora, pois – recorreu a gente co­­mo Osni da banquinha da Westphalen e deu-se um jeito: é quem lhe guarda os diários e as revistas de História, que devora como broas quentinhas.

Nas horas que passamos juntos, falou-me dos cristãos novos e das atrocidades de Salazar. Informou-me do cultivo de azeitonas e do cinema de Vittorio de Sica. Tratou do filósofo Espinoza, de alheiras e da pesca do bacalhau. Não lhe escapa a obra de Saramago. "Lestes Caim?"

Quando me despeço, pergunta se posso ajudá-lo a encontrar o taxista, aquele. Precisa falar-lhe. Minha esperança é que o chofer leia esta coluna e procure o Gar­­cia. Sorte a dele: há de fazer com o português uma longa viagem pelo que existe – dos pães à divina voz de Roberta Miranda.

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