O exagerado Cazuza dizia que “só as mães são felizes”. Ao parirem, sugere o poeta, as mulheres entendem que a vida dá suas ordens e, soberanas, se entregam à natureza, essa selvagem. Bacana. A frase, com as devidas licenças, também pode ser atribuída a outras categorias. Aos fotógrafos, por exemplo. Repare como são insuportavelmente contentes, cavalgando pelas ruas, coletes cheios de truques, portando rédeas e asas nos olhos. E quanto aos simples, então? Alheios ao “mal-estar da cultura”, como previa Freud, estão vacinados contra toda sorte de insatisfação criada pelo intelecto. Os inocentes e naïfs comem com apetite e gargalham sem censura, êta mundo bom.
Mas hoje a frase vai para os restauradores – só eles são felizes. Nosso estudo de caso se chama Leandro Nicoletti Gilioli, 37 anos, arquiteto e urbanista, professor na Universidade Tuiuti e uma década e meia de serviços prestados à salvação de prédios históricos. Imagine andar pela cidade e passar ao lado da Ferragens Hauer – aquela belezura que parece brincar de esconde-esconde atrás da Catedral – e saber que graças a você aqueles tijolos centenários não viraram aterro nas cavas do Campo de Santana. Ou olhar para o aristocrático Edifício Eduardo VII da “Tiradentes” – nossa versão do Flat Iron Building de Manhattan –, estalar os dedos de excitação e poder dizer: “Me aguarde”.
A lista de restauros da qual Leandro faz parte é extensa – passa pelo forro da Igreja da Ordem e pelo Hospital Nossa Senhora da Luz. Não causaria espanto se ele sapateasse na frente desses endereços. Não seria o único. Há entre nós outros restauradores bem cotados no FIB – Felicidade Interna Bruta: Giceli Portela, Ivilyn Weigert, Aline Bandil e o mestre de quase todos eles, Cláudio Maiolino. É fato que não chegam a ser uma Tropa de Elite, prestes a ocupar o que está entregue às goteiras e cupins. Talvez não ultrapassem 0,5% do total de profissionais da arquitetura da capital, mas, ainda assim, formam um exército contra a barbárie – evitando, como diz o holandês Rem Koolhaas, que todas as cidades fiquem com cara de showroom.
Não repare se alguém muito antigo sentir palpitação ao ouvir falar do Teatro Hauer
É preciso estômago. Nesse campo, ninguém dá mole – falta dinheiro, pulso firme do poder público e sobra proprietário rezando para o teto cair. Vem a calhar aquela frase do cubano Tomás Gutiérrez Alea, aqui citada de cabeça, de que no calor dos trópicos, tal como as frutas, tudo o que é belo pela manhã apodrece ao entardecer. É para entendedores.
No momento, Leandro Nicoletti Gilioli se fia em duas obras que nos pedem um cheek to cheek. Uma é o restauro do pré-moderno edifício da Relojoaria Raeder, na Riachuelo, 147, onde hoje funciona um brechó. Para ajudar os marmanjos a se situarem no mapa, fica na frente do Graxaim. O outro projeto era um caso dado como perdido – o antigo Teatro Hauer, na Rua Mateus Leme, esquina com a Treze de Maio, de propriedade do advogado Rafael Carneiro. O prédio é vizinho do Conservatório de MPB e dos teatros Lala Schneider e José Maria Santos. Está quase pronto – as cimalhas, balaustradas, “cachorros” – e, destarte ser uma construção de 500 metros quadrados, 12 janelões, discreta no conjunto, mereceria inauguração com descerramento de placa, banda Lyra, trupe de palhaços e declamações de uma diseuse. Justifico.
Não repare se alguém muito antigo sentir palpitação ao ouvir falar do Teatro Hauer. O local provou do fausto e da glória a partir de 1891 e durante as primeiras décadas do século 20 – quando o capitalista José Hauer e seus descendentes, sem exagero, eram donos de pelo menos 40% de Curitiba. Sabe a geração da luz elétrica? Pois era com eles. Há bons estudos a respeito, como o assinado por Marta Morais da Costa, autora de Palcos e Jornais – representações do teatro em Curitiba entre 1900 e 1930. A pesquisadora aponta as mais de 40 peças ali montadas no período em que o Hauer rivaliza em popularidade com o Guaíra (São Theodoro) e demais palcos de sociedades étnicas – e parecia haver um em cada esquina. Era pródigo em operetas, comédias e até em espetáculos anticlericais, um quitute da época.
Em relatos de outro estudioso, Elton Barz, ficou registrado que o tempo e a cidade não foram muito gratos ao Teatro Hauer. Na origem, um luxo só. As instalações abrigavam o cinematógrafo, shows de iluminismo, micos amestrados e um restaurante com as melhores vinas da paróquia. Em 1947, virou Cine Marabá, para deleite da elite ilustrada, mas a ideia não resistiu aos anos 60, quando o Marabá abriu as portas para o teatro rebolado e filmes cabeludos. A fase mundana inspirou até uma musiquinha de sacanagem, cujo conteúdo pergunte ao senhor seu avô. Depois virou Cine Bristol, igreja evangélica, até chegar a sua última encarnação, como estacionamento. A essa altura, do Hauer original, só algumas pedras e a casa de esquina, parte das instalações do teatro, uma sobrevivente que, por ironia, abriga, no segundo piso, a escola de atores do Lala Schneider.
O novo proprietário se comoveu ao descobrir que sua aquisição, vejam só, transcendia o valor comercial do metro quadrado. Ao que se somou um detalhe – o antigo Teatro Hauer serviu de endereço para a fundação do Coritiba FC, em 1909. É de imaginar o povo dizendo “olhe, naquele sobrado antigo nasceu o Coxa”. O busílis é que os dirigentes da agremiação não deram muita pelota para os pedidos de parceria, o que liberou o dono pintar as paredes de vermelho, tal e qual a Ferragens Hauer, reforçando a ligação cultural entre os dois endereços. “O estudo das camadas de tinta não nos levou à cor original, daí a escolha”, explica Leandro. O azar tem sua graça.
A propósito, a primeira pessoa que o presente proprietário do Teatro Hauer chamou para ajudá-lo foi o pedreiro José dos Anjos Gonçalves. Seu José não cursou nem PUC, nem nada. De restauro em restauro, dominou as manhas do ofício. Virou mestre de obras especializado em casas que o vento quase levou. Foi ele quem falou de Leandro ao dono do estacionamento, apresentando-lhe o mundo novo de homens e mulheres de boa vontade, que driblam a fúria imobiliária e a sonequinha criminosa de alguns gestores.
A propósito, desconfio que só os pedreiros são felizes. A gente se fala.