| Foto: Foto: Felipe Rosa/Tribuna do Paraná / Arte: Felipe Lima

Semana passada, a editora Maria Clara Vergueiro publicou na Folha de S.Paulo um relato que, de largada, merece ser listado entre os melhores obituários de todos os tempos. Trata de seu avô, o crítico literário Antonio Candido, morto no último dia 12, aos 98 anos, deixando seu nome gravado com pedrinhas de brilhante na história da inteligência brasileira.

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Candido era um gigante, como se sabe – mas, de acordo com o texto, teria declarado à neta o tamanho de seu desconforto com os dias de hoje. Sentia-se deslocado, o cara que não foi convidado para o baile do colegial. Diagnosticou a própria melancolia: tinha nascido num mundo, crescido em outro e chegado a um terceiro, “que eu não compreendo e do qual não sou parte”.

O autor do magistral Formação da literatura brasileira não estava sozinho na nau dos insatisfeitos, dos assustados, dos que procuram um caminhão de mudança urgente. Milhares de pessoas carregam o mesmo desconforto, nem sempre com coragem de admitir, debaixo do perigo de serem tachados de inimigos da biodiversidade promovida pela revolução digital – a discussão mais enfadonha desde o “poder do pensamento positivo”, o “Triângulo das Bermudas” e a “paixão de Jesus Cristo segundo um cirurgião”.

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A superestimada velocidade dos tempos hipermodernos mais parece uma patologia social – uma bipolaridade alimentada por copaços de vodca e de tranquilizantes – do que uma virtude a ser praticada. É o que veremos, assim que as ausências trazidas pelo individualismo coercitivo e pela banalidade premiada chacinarem nossos pobres miolos, não sem antes minar nossas esperanças. De todas as definições para a esquizofrenia que nos assola, a mais divertida saiu da boca do escritor moçambicano Mia Couto: “A vida está a melhorar, sim senhor, mas está a melhorar muito mal.”

A superestimada velocidade dos tempos hipermodernos mais parece uma patologia social do que uma virtude a ser praticada

Antes que alguém faça um desaforo e diga que esse papo cheio de manha é coisa de quem não consegue digitar com os dois polegares, um alerta. O “mal-estar de Candido” atinge também gente jovem, que pela lógica devia se sentir muito bem, obrigado, a bordo do Uber da vida. Conheço exemplares às pencas. A propósito, conheço os empreendedores Gustavo Ferreira e Teotônio Souto Maior, o Téo, trintões, donos da editora Banquinho e do Estúdio Invertido, em Curitiba. Antonio Candido os representa.

Conheci-os em sala de aula, no início dos anos 2000, e não me ocorre que fossem amigos do peito. Téo, assim batizado em homenagem ao santo cívico Teotônio Vilela (o do hino Menestrel das Alagoas), foi formado nas lides da esquerda. Tipo raro de aluno, aficionado em samba, demonstrava mais intimidade com os nomes de Prestes, Marighella e Lamarca do que com qualquer ídolo pop de sua geração. Gustavo, brincava a turma, era o tipo que jogava tênis no Clube Curitibano. Culto, brilhante e interessado, certa vez me mandou uma foto da privada de sua casa. Depois de uma aula que tivemos, decidiu batizá-la de “Duchamp”. Não lembro de outro estudante ter polemizado – e debochado – tanto do ready made quanto ele.

Para surpresa geral do colegiado, Téo e Gustavo decidiram fazer o trabalho de conclusão de curso juntos, desafiando os astros, os búzios, o escambau. Tiraram 10. Nunca mais se largaram. Foi assim que tempos depois surgiu Banquinho, uma agência de notícias a quatro mãos, nascida para bombar na internet. Não fez feio. No ápice do negócio, a dupla dinâmica chegou a 6 milhões de usuários únicos por mês e mais de 20 funcionários. Paralelo ao êxito, que lhes rendeu centenas de tapinhas nas costas e a pecha de meninos prodígio, veio o desejo de fazer algo que ficasse em pé, do qual sentissem orgulho na hora fatal. Um livro, por exemplo. Seria apenas um capricho, não fosse ter virado um projeto de futuro, na contramão das promessas de fortuna alimentada pela web.

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É fato que a montanha russa do mercado digital os pegou de jeito, sem dó – como a uma pá de gente. Mas quando isso aconteceu a Souto Maior & Ferreira Empreendimentos já tinha se entregado a delícias que o vento levou, em parcerias tão prazerosas quanto a deles, com as quais aprenderam o que ninguém mais parecia ensinar. Depois de uma sociedade com o artista gráfico Daniel Barbosa, da Caderno Listrado, tais livros passaram a ser artesanais, costurados, com uma serigrafia ali, um carimbo de clichê ali. Aperitivo: da coleção fazem parte papas finas como uma edição das poesias do roqueiro Jeff Tweedy e o álbum de fotografias Wadad, de Eduardo Macarios, para citar alguns.

O mundo quer esquecer que os tipos têm nome, estirpe e personalidade. Dá trabalho, exige delicadeza

Quando se deram conta, em vez uma sala apinhada de computadores último tipo, Téo e Gustavo se viram com as mãos sujas de tinta, operando duas máquinas tipográficas dos tempos de vovó criancinha, compradas em São Paulo. Pouco velozes e muito furiosas, uma dessas traquitanas pode soltar uma tonelada no mindinho. A propósito, são da marca Catu. Idade não revelada nem com a ajuda do carbono 14. E me permitam, lindas de morrer.

Eu seria capaz de jurar que um dia, na velhice, causaria espécie em contar que conheci três impressores “das antigas” – meu tio Juvenal, o seu Aírton da Vila Leão e o Gregório da Gazeta. Errei. Agora são cinco. Téo e Gustavo me deram uma aula de tipografia móvel mil vezes melhor do que as noções rápidas, rasteiras e chulezentas que, anos atrás, ousei lhes mostrar em sala de aula.

Para despeito dos arautos de que o YouTube matou o passado, foram dois representantes do futuro que abriram para mim uma gaveta com milhares de “a, p, t, w, z...” feitos de chumbo. É preciso pegar cada letra pequenina, saber se são da família Verdana ou, sei lá, “Grotesca gorda apertada”. Isso mesmo. O mundo quer esquecer que os tipos têm nome, estirpe e personalidade. Dá trabalho, exige delicadeza. É uma mitologia gráfica – e a cultura gráfica, afirmam os Manés, virou fumaça. Mal sabem que tipos podem ser sexies, engraçados, másculos, frescos. Mais. Que cada letra, que forma palavras, se dá bem com uma categoria de papel – hoje uma especialidade do sambista e jornalista Téo, capaz de tecer elogios ao teor de algodão de uma folha branca nascida para abrigar uma imagem.

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É bom que se diga – a escolha pela tipografia e afins não foi tranquila. Os meninos pensaram abrir um restaurante, talvez uma padaria, mas era tarde demais para se livrar da nhaca da tinta de impressão. Num dia chegaram as máquinas. Em outro, um velho impressor para lhes ensinar como é que se faz. Por fim, uma gurizada querendo fazer relevos, imprimir poesia, coisas assim.

Faz pouco, um empresário do ramo lhes deu um conselho: que domassem a paixão. Atrapalha o mundo dos negócios. Bem que tentam – mas que olhos não faíscam quando a impressora velha batendo pino cospe uma frase, criada letra por letra, entintada, pensada, como tudo o que pode ser de fato eterno. Gustavo avisa que lê livros num Kindle, caso o julguem com cheiro de naftalina. Téo se cala, logo consente. Tudo indica que os dois editores se mudaram para um lugar onde Antonio Candido iria se sentir muito à vontade. Suspeito não haver companhia melhor.

Dupla de jornalistas e editores imprime livros artesanais e se lança no aprendizado da mais sólida tradição gráfica.
Máquinas Catu, de fabricação brasileira, foram compradas em São Paulo: “mordida” de uma tonelada.
Jornalistas trabalharam quase uma década no ramo digital. Projeto paralelo de edição de livros acabou por se impor.
Grupo se alterna entre a tipografia e a serigrafia. Projetos autorais convivem com encomendas de cartões com relevo, os preferidos da freguesia.
Interessados em impressão batem na porta da Banquinho Edições.
Impressão rústica e artesanal atrai poetas e designers.