| Foto: Arte: Felipe Lima

O "caso Ariadna" – primeira transexual a participar do Big Brother Brasil – me fez lembrar de um acontecido. Anos atrás, fui pautado para cobrir uma espécie de "caravana do arco-íris" a bordo do trem que vai de Curitiba a Paranaguá. Lotando parte dos vagões havia ruidosos gays, lésbicas, transexuais, travestis e simpatizantes, todos em trajes de gala – ainda que às sete da matina.

CARREGANDO :)

O evento, gigante pela própria natureza, poderia provocar o interesse dos leitores e quem sabe uma boa conversa. Não se tratava, afinal, de uma excursão LGBT ao litoral, mas de uma manifestação criativa, como pouco se vê. Dito e feito – a comunidade gritava palavras de ordem, mas sem perder a ternura, pois era domingo azul-piscina e a vida, como diziam, é breve.

Antes da partida, era só alegria e piadas de salão que deixariam vovó convencida de que estava perto o Juízo Final. Algo, no entanto, chamava atenção. Percebia-se que onde estavam duas ou mais trans havia overbooking. Elas são todas as mulheres do mundo ao mesmo tempo. E como disse Arnaldo Jabor numa célebre crônica sobre as travestis, "nunca subestimem um homem que se veste de mulher". Tive provas disso.

Publicidade

À medida que o trem avançava pela Serra do Mar, passou a imperar um silêncio quase imoral nos vagões LGBTs. Longe da plateia curiosa que ficou da estação ferroviária, as frajolas e altaneiras Vanessas, Veruskas e Giseles desceram do salto e se puseram a falar de si, fazendo dos trilhos um divã. Eu tinha encontrado a notícia: além de todas as mulheres, aquelas gurias carregavam também todos os dramas que existem.

Ouvi relatos sobre crueldade, abandono, violência, covardia de fazer chorar. Não consigo apagar as imagens de pais ensandecidos expulsando de casa seus meninos delicados; de professores pedindo que engrossassem a voz – numa aula de Biologia quiçá; de laranjas e tomates podres atirados pelas costas, seguidos de palavras apimentadas de ódio. Quem de nós poderia suportar?

Uma das passageiras – não esqueço –, em vez de revirar o baú das memórias, preferiu mostrar cicatrizes medonhas nas panturrilhas. "Sabe o que é isso? Foram os homens. Depois que juntei dinheiro para fazer minha adequação sexual, nunca mais um deles me tocou..." Fiquei pasmo. Caía por terra o mito da libido incontrolável, da idolatria aos machos e de outras pataquadas que muitas vezes acreditamos ser a imagem e a semelhança do universo trans. Sábio Jabor.

Confesso que as conversações do trem ainda me assombram. Por isso, temia pela candidata diferente do BBB, mesmo suspeitando de que ela não tivesse muito a dizer. Nem o nome de deusa grega nem a feminilidade extrema haveriam de salvá-la do circo de horrores. Causa certo alívio que não esteja mais sujeita à patuleia aloprada que na última edição premiou com a fortuna o deletério Marcelo Dourado. Por outro lado, lamento que os telespectadores tenham cortado tão cedo o fio de Ariadna, privando de alguma glória a cada vez mais autoritária indústria do entretenimento. Paciência.

A quem a natureza humana interessar possa, uma dica: dê uma googada no nome do urologista mineiro Eloísio Alexsandro, que atua no Hospital Pedro Ernesto, no Rio de Janeiro, e se tornou referência internacional no atendimento às pessoas trans. Arrisco dizer que ele sabe até o sexo dos anjos, uma questão bizantina, mas bem a propósito.

Publicidade

Ler sobre esse médico é como embarcar num trem LGBT, com a vantagem de que a viagem não acaba em Paranaguá. Eloísio é capaz de falar tanto da androginia na arte, a exemplo do quadro "A mulher barbuda", pintado por José de Ribera no século 17, quanto na reconstrução peniana dos mutilados de guerra. O território das Bubas, das Genis e das Diadorins lhe são ficção, mas ao mesmo tempo realidade na sala de espera do consultório. Daí, presumo, brota seu admirável senso de beleza e de tragédia.

A propósito, uma confissão bem vira-lata. Ainda não me acostumei com o cartunista Laerte vestido de mulher. A variação para o tema intitulada cross-dressing não cabe na minha cabeça oca. Mas nada de tomates, OK. Só tem um remédio: eu que trate de entender. Tá combinado.