| Foto: Foto: Daniel Castellano/Gazeta do Povo / Arte: Felipe Lima

As primeiras plateias do bailarino Wanderley Lopes, 53 anos, não foram as do Teatro Guaíra – o que seria natural. Nas últimas três décadas, Wande, como é chamado, ajudou a lotar o Grande Auditório tantas vezes quanto as contas do rosário. Mas antes disso flertou com outros ambientes, nenhum deles forrado com veludos. Por volta de 1971, então um piá, viu uma centena de funcionários do Educandário Curitiba, no Hugo Lange, cruzarem os braços, na pressão para que aquele interno “capaz de subir pelas paredes” fosse retirado dali “antes do bater dos sinos”. Venceram a parada.

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Seis meses depois, nova plateia prestes a linchá-lo. O capeta em forma de guri teve de se refugiar por cinco horas no alto de um cedro do Educandário Munhoz da Rocha, enquanto arrefecia, digamos, um conflito. Só desceu quando chegou a Aero Willis do Instituto de Assistência ao Menor (IAM) e o carregou para seu novo endereço, a Casa do Pequeno Jornaleiro, no Rua Saldanha Marinho. Ali, na esperança de corrigir “casos difíceis”, os inquilinos ganhavam um medonho uniforme de brim, uma boina, algumas sovas e pencas de jornal para vender na rua, entregues ao sol e à chuva, mais à chuva. Chegou na instituição com 9 anos, saiu com 19, para surpresa, em direção à glória dos palcos.

A vida pregressa de Wanderley Lopes não é nenhum segredo. Ainda na década de 1980 ele foi um dos protagonistas do projeto Gente que faz, uma parceria do Bamerindus com a hoje RPC ocupada de contar histórias que nos faziam beliscar. De lá para cá, tornou-se um case, sempre que se quer citar um exemplo de mérito e superação. O jornalista Zeca Correia Leite ensaia, faz tempo, dedicar-lhe uma biografia. E causa espanto que Wande não se recuse a contar sua saga, tantas vezes o fez, calcula-se, até para si mesmo, toda vez que é ovacionado.

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Aos desavisados, Wanderley tinha 3 anos quando foi deixado de favor num orfanato para filhos de doentes de hanseníase. A vida seguiu jogando contra, mas nada que o impedisse de se tornar, na juventude, o primeiro bailarino de uma das maiores companhias de dança do país, o Balé Guaíra. Bonito, talentoso e vacinado contra afetações que não raro acometem os eruditos, viu-se, pronto, disputado por coreógrafos como Carlos Trincheiras e Márcia Haydée. Pudera, o moleque de rua tirou o Cisne Negro da ficção.

As piruetas do maior bailarino do mundo não faziam nem cócegas para alguém dado a escalar postes de luz

A palavra aposentadoria não cabe no vocabulário do bailarino, por mais que julgue ter chegado a hora. “Eu tinha mais cabelo”, debocha, sugerindo que não é mais o mesmo. Não consegue convencer ninguém. Dia desses lhe disseram que foi talhado para o balé contemporâneo, do que deve se ocupar nos próprios solstícios e equinócios. “As pessoas acham que vivi um conto de fadas, mas não foi moleza, não”, avisa aos navegantes, num dos raros momentos de gravidade. De resto, prefere uma tática que cai bem aos artistas de alto galardão, a iconoclastia.

Na adolescência, decidido a se emendar, o “interno” Wande teve três ídolos, nessa ordem – o mestre de artes marciais Bruce Lee; o atacante do Coxa Tião Abatiá; e aquele menino, o Mikhail Baryshnikov. Pensava neles cada vez que descia a Doutor Muricy e seguia pela José Loureiro carregando dezenas de diários, acomodados ao lado de fornidas edições das revistas Manchete e Cruzeiro – nunca menos do que 10 quilos de informação concentrada na cacunda.

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Àquela altura, ia bem nas aulas de caratê, oferecidas pelo Pequeno Jornaleiro, mas havia um senão: um olheiro o viu jogando pelada na Praça Osório e se atirando com vontade às águas do chafariz. Chamou-o para o juvenil do Coritiba. A dúvida se diluiu como um Sonrisal na noite em que, ao chegar da escola – a Professor Cleto –, viu Baryshnikov na televisão. Tinha 15 anos. Nem ponta esquerda nem carateca. Não fazia a menor ideia do que acontecia, mas era o que ia fazer. “Fui tomado por uma sensação inexplicável. Eu me senti fazendo aquilo. Queria ser o Baryshnikov”.

As piruetas do maior bailarino do mundo não faziam nem cócegas para alguém dado a escalar postes de luz, contando apenas com a ajuda das hastes de um velho Kichute, sua primeira sapatilha. Pelo menos assim julgava. Foi preciso castigar o físico de estivador, até dar-lhe o design de pássaro de viveiro belga que ostenta agora. Custou, mas nada comparado a enfrentar a gozação dos 103 colegas do Pequeno Jornaleiro, em coro, gritando “óia o 36”.

O episódio foi contado com requintes pela jornalista Joana Neitsch, na série Perfil da Gazeta do Povo, publicada este ano. Os piás folheavam as revistas que vendiam. Um deles flagrou em Manchete a foto do Balé Guaíra e – bem no centro, gabola, o “36”, número de Wanderley na instituição. Pouca gente sabia da novidade. Em vez de ser erguido em triunfo, não demorou a escutar o primeiro grito de “boiola” e seus caprichados sinônimos. Do lado de lá, as meninas de tutu, oriundas das melhores castas, também não deixavam barato. Sem dó, chamavam-no de Rambo. Mal sabiam que ele chorou vendo Pixote, de Babenco.

Pois lembram do mito de Pigmalião? No ffinal da década de 1970, uma bolsa em Portugal, onde dançou, entre outras, na companhia da Fundação Calouste Gulbenkian, se encarregou do cala-boca. “Fazia aula de manhã, de tarde e de noite.” Depois Wanderley voltou, não só para viver os primeiros papeis como para se casar com a primeira bailarina, Eleonora Greca. Fosse Curitiba um reino, Nora, como costumam chamá-la, seria uma cabeça coroada. A eterna Beatriz de O Circo Místico é culta, educada e impressiona pela suavidade que persiste debaixo da agressividade de sua cabeleira. É lindíssima, e é a amada do plebeu. Tudo bem, Wande diz que não foi assim, “uma fábula”. Doeu. Mas que nos permita acreditar. Sabe como é, estamos precisando.

Wanderley Lopes posou para fotos em jardim público, ao lado de sua casa, no Tarumã.
Depois de passar por dois orfanatos e pela Casa do Pequeno Jornaleiro, o Billy Elliot curitibano não só descobriu a dança - brigou por ela. Provou da rejeição junto aos outros jornaleiros e também nos círculos mais eruditos da dança.
Contra todas as evidências, as langas andanças entregando jornal, as peladas na Praça Osório, os banhos de chafariz e a habilidade para subir em árvores contribuíram para dar graça e leveza ao bailarino.
Estágio de quase um ano em Portugal garantiu reviravolta na vida do ex-Pequeno Jornaleiro: Wanderley voltou para os melhores papéis no corpo de baile do Teatro Guaíra,
Rancor? “A arte moldou o menino que viveu no abrigo”, diz Wanderley.
Cenas da vida antes da dança. À direita, a carteirinha do Pequeno Jornaleiro, onde entrou aos 9 anos e saiu aos 19, para se tornar um nome da dança nacional.
O Pequeno Jornaleiro seguia sete mandamentos. Wanderley viveu no local em tempos mais amenos. No passado, local era palco de violência contra crianças e adolescentes.
Um dos “anjos” de Wanderley foi Maria Moraes, que o protegia no Educandário Curitiba. A outra foi Maria Helena Pimpão, da Casa do Pequeno Jornaleiro, a mulher que o incentivou a ser bailarino, apesar da pressão que iria sofrer.