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José Carlos Fernandes

Um brasileiro chamado Divino

 | Foto: Aniele Nascimento / Arte: Felipe Lima
(Foto: Foto: Aniele Nascimento / Arte: Felipe Lima)

A cabeça branca e o mineiríssimo sotaque de Divino Antônio de Oliveira chamam atenção, em especial no Tribunal Regional do Trabalho, o TRT, em Curitiba, onde virou freguês. Há nada menos do que duas décadas, nosso amigo comparece ao local para audiências trabalhistas com ex-funcionários – foram 12 ao todo, uma Santa Ceia da CLT. Sentam-se e negociam. Depois, resta-lhe raspar as economias e quitar a conta.

Algumas multas foram modestas – outra chegou a R$ 50 mil. A mais alta foi calculada em R$ 500 mil, reduzida a poeira depois de torturantes rodadas de conversa. Certa feita, Divino não se conteve. Rompeu o protocolo e assim se dirigiu à juíza: "Me permita, mas sou obrigado a confessar a Vossa Excelência a tristeza profunda que sinto por ter de pagar o que não devo". Pagou, para surpresa geral da nação: o ex-patrão podia alegar falência e ausência de bens, mas nem pensar. Num pacto com seus botões, decidiu encarar processos, inclusive os arquivados.

Coisa de um mês, liquidou a última pendenga. Foi sua hora da verdade. Olhou para si depois da tempestade. Estava com 69 anos e se sentia como um condenado em fim de pena. Mas nada de "levar para casa", como se dizia. Refez os planos e avisou aos amigos que o aguardem – Divino vem que vem fervendo.

Os Oliveira vieram para Maringá na década de 1940. Encheram-se de filhos, 11 ao todo, todos com a letra "D" – Dalmo, Dalberto, Dalton, Dalva... Quando Divino, o mais velho, tinha 8 anos, o pai – pequeno negociante de feijão e cebola – "quebrou". Data desse dia a primeira falência de que teria notícia. "Arrumei uma caixa de engraxate e fui para a rodoviária", conta. Passou a ajudar nas despesas e bem lembra das lágrimas dos seus quando compareceu com os primeiros caraminguás. Aos 14, conta, "já achava que era homem". Aos 18, casou, tendo a seu favor o exercício da profissão pela qual até hoje se apresenta – serralheiro. Aos 20, estava doente por causa das soldas.

Chegou a achar que tinha ganhado as contas do destino, até praticar a maior de suas especialidades: a de virar a mesa. Se não podia trabalhar com ferro, trabalharia com alumínio, então uma novidade. Ficou tão bamba que em 1967 se mudou para Curitiba, onde "subiu na vida". Literalmente. Num golpe de sorte, ganhou "de empreitada" o serviço que o catapultaria no ramo – a colocação das esquadrias do antigo prédio da Telepar, na Manoel Ribas. Terminada a tarefa, abriu seu próprio negócio. Era 1971.

Hoje, Divino seria chamado de microempresário. À época, dizia-se um "remediado". Chegou a ter 120 funcionários, o que fazia dele uma espécie de rei do alumínio da Rua 24 de Maio, seu endereço nos anos prateados da fartura. Fez supletivo à noite e cursou duas faculdades – Economia e Contábeis, na Fesp. Até título de comendador recebeu. Melhor que a encomenda, tinha um vitorioso time de futebol de salão, o Unibox F.C. O sonho acabou quando Collor virou presidente. É história sabida. "Muita gente se suicidou", lembra Divino. Quanto a ele, ficou devendo as calças.

Bem que tentou recorrer à sabedoria sertaneja: chamou a turma da serralheria e fez os acertos, na base da palavra dada. "Não digo que meu negócio faliu. Digo que paralisou", corrige. Achava que, depois do terremoto, ergueria as portas outra vez. Não só não ocorreu como se deparou com o que chama de "inferno na Terra" – o oficial de Justiça plantado na porta. Até hoje sente palpitação quando alguém toca a campainha. Michel Foucault estava certo – o homem comum se vê atirado na escuridão da vigilância bruta.

Só não partiu em disparada para Quixeramobim por uma razão que faz seus interlocutores ficarem com os olhos cheios de água: não podia dar mau exemplo para os irmãos, aqueles que ajudou a alimentar quando guri; nem para os filhos – seis no total.

Passou. Mas, cá entre nós, bem que ele queria virar o disco, mas nem com maçarico. Todo mundo quer saber do acerto de contas do Divino, esse herói no país dos Metralhas. "Pela luz que me alumia...", exclama a cada investida dos curiosos. Sim, admite que rezou em desespero para outro Divino, o Espírito Santo. Sim, provou da desilusão, mas deixem disso, ainda se emociona diante da bandeira nacional.

"Acho que sou um apaixonado", resume. Só assim para zerar a conta a cada bancarrota. Só assim para tirar faíscas de máquinas paradas: Divino se fez um maravilhoso conselheiro para encrencados, endividados e empreendedores. Tem experiência, afinal, provada no ferro e no fogo.

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