Água Verde, 16 de julho de 1950. O rádio de válvulas da Invictus ou da Mundial? foi colocado no meio da sala do comerciante Paulo Wendt. Os móveis afastados, para dar espaço aos 45 convidados, gente da vizinhança, os Rubineck, os Zandoná, os Perini ("e o Vadico, não veio?"). Nos fundos da casa, dois barris de chope, para os homens. Na mesa da cozinha, gasosa Cini e bolo de fubá, para as mulheres e os fedelhos. Festa.
Creiam no pós-Guerra esse cardápio de convento equivalia a um lanche da Confeitaria Iguaçu. Mas era dia de final da Copa do Mundo vitória anunciada do Brasil contra o Uruguai. E, coincidência, aniversário de 10 anos do guri Paulo Osni Wendt, filho do Paulo Wendt. O pai, dono de posto de gasolina, podia cometer excessos, sem prejuízos à despensa. [Tempos depois, "Wendt pai" seria transformado no mítico "Rei da Noite", eternizado na obra de Dalton Trevisan. Mas naquele julho não passava do pacato cidadão de uma cidade de 180 mil habitantes; mil automóveis, incluindo o seu Mercuri coupé 48; e o equivalente em carroças.]
A gasosa rolava solta. Na Rádio Nacional do Rio de Janeiro, a narração de Antônio Cordeiro e Jorge Curi no estúdio; César de Alencar no campo. Tudo seguia na santa ingenuidade quando o Brasil marcou o primeiro gol. Gritinhos no portão, ecos na Baixada. Continuasse assim, daria até para soltar balão os mais famosos eram os do Alberto, goleiro do Atlético. Até que entra em cena o desmancha-prazeres.
Aos 20 minutos do segundo tempo, Schiaffino empata: 1 x 1. Aumenta-se o volume. Aos 34 minutos, Gigghia marca 2 x 1. Arranca sem dó o doce da boca das crianças. Nada de cantar "Parabéns..." Silêncio no Maracanã. Silêncio na casa dos Wendt. Isso não se faz. "Nunca esqueci a festa dos meus 10 anos", conta Osni, seis décadas depois do Maracanazo particular. Tem 73 anos, mas ainda é capaz de montar um álbum de figurinhas com sua fábula de infância. O chope acabou pia abaixo. Ninguém soltou balão. O luto fez o Cemitério da Água Verde, ali perto, parecer um parque de diversões do Chico Serrador.
O que dói mais é lembrar que, dias antes da derrota, Osni tinha se tornado uma espécie de "rei da rua". Felizardo, foi o único da redondeza a ir à Copa do Mundo em Curitiba assistiu a Suécia e Paraguai, num friorento 29 de junho, no Estádio Durival de Britto, então chamado de "o colosso do Capanema". O primeiro jogo tinha sido Espanha e Estados Unidos, 3 a 1, em 25 de junho. Ir ao campo custava os olhos na cara. Daí a turma de calça curta fazer rodinha para ouvi-lo falar dos 8 mil torcedores, da arbitragem de Mário Viana. Por alguns minutos, virou o rádio dos sem-peleja, como então se chamava a partida.
A manchete da Gazeta do Povo anunciava "Sensação na cidade" e "Paraguai merecia vencer". Do lado do anúncio "Exame de escarro", do laboratório Odeani, o jornal narrava os feitos dos suecos Svensson, Nordhail e Palmer, quase chapas do Osni, o maioral: vira de perto os craques da "esquadra paraguaia", a "pelota" balançar a rede, o arqueiro, os shootes. Contou tudo, com ênfase, depois convidou a turma para um café, dali uns dias, em 16 de julho...
Há pouco tempo, voltou ao "Durival de Britto" e se deixou fotografar no local em que acompanhou a Copa de 50. Na emoção, botou anúncio, atrás de quem, como ele, tinha ido aos jogos. Propunha um jantar quem sabe, no inconsciente, preparava uma reedição da festa fracassada. Recebeu duas respostas, só. Obrigou-se a fazer contas: quem tinha 20 anos naquela época agora beira os 84; os de 30... 94 anos. Tinha 10 e, se bem lembra, não havia outros como ele por lá. Entendeu ter vivido para contar aquele dia. Eis seu presente de aniversário.
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