A contar pelos ânimos, 2017 pode se tornar o “ano da graça da ressurreição de Gilda”. Não a fatal Gilda da atriz Rita Hayworth ou a multiartista franco-brasileira Gilda de Abreu – ambas merecedoras de uma bancada de incensos –, mas o morador de rua Rubens Aparecido Rinque, figura das mais populares na Curitiba das décadas de 1970-1980.
Gilda, como Rubens era conhecido, teria chegado à cidade pouco antes da Geada Negra, em 1975, e aqui encerrou sua participação especial em 15 de março de 1983, aos 32 anos, com os requintes de crueldade destinados aos miseráveis: morreu tuberculoso, com cirrose e sob os efeitos de uma meningite purulenta. Alguns a viam como uma travesti pós-dilúvio universal, outros como um doidivanas trajando saias. Morava num cortiço da Desembargador Motta. Filava cigarros e angariava uns dobrões para tomar um trago, sempre debaixo de uma ameaça: “Cincão ou um beijo?”
Havia quem lhe desse o dinheiro e encomendasse a vítima para seus lábios, o que mais de uma vez acabou em pancadaria, colocando-a no time da valente Madame Satã. Tinha cicatrizes deixadas por facadas. De todas as suas performances, contudo, a melhor era a de festeira. Dançava livre no petit-pavê e ali exibia seus vestidos rotos, que nada combinavam com a barba por fazer e com os sapatos de rapaz. Puxava conversas descabidas que divertiam os boêmios e os jovens em núpcias com as horas. Em miúdos – exceto pelos caretas, era amada com a mesma devoção destinada à poeta Helena Kolody. Não duvidem.
Ao saber do passamento de Gilda em condições de indigente, os conhecidos – e tudo que é alma que passava pelo Calçadão da XV, seu CEP oficial –, dedicaram-lhe exéquias polonesas. Foram três dias de luto na Boca Maldita, expressas em bilhetes mimosos presos a um obelisco de pedra. Já se falava então em lhe dedicar uma praça, o que provocou uma grita impressa nas páginas dos jornais. Ficou nisso mesmo. Depois do enterro, no Cemitério Santa Cândida, num jazigo doado pela travesti Márcia, a paixão, vida e morte se Gilda se tornou uma conversa dos mais velhos, dos malditos, dos poetas e dos inconformados.
Na década em que esmolou moedinhas e atenção, Gilda foi documentada por bambas da fotografia
Foi assim pelo menos até dezembro passado, quando movimento encabeçado pela ativista trans Maitê Schneider, em parceria com o agora vereador Jorge Brand, o Goura (a partir de uma ideia do crítico de arte Paulo Reis), reivindicou que uma esquina abandonada da Rua Visconde de Nácar com a Cruz Machado abrigue a “Praça de Bolso da Gilda”. Antes que lhe atirassem a primeira pedra, Maitê conseguiu uma parceira boa o bastante para um cala-boca geral: o cartunista Laerte desenhou um belíssimo perfil da travesti mendiga, imagem estampada no tapume do terreno baldio que dará origem à praça. Caiu na rede, ninguém mais segura. O território está demarcado – e se der briga, o que é provável, vai ser coisa de cachorro grande. Sexta-feira próxima, na Câmara, os envolvidos fazem um novo ato, dessa vez delegando tarefas para os que se voluntariaram a trabalhar na fundação do novo logradouro.
O projeto segue os moldes da “Praça de Bolso do Ciclista”, na São Francisco com a Presidente Faria. Deve ser erguido com uma mãozinha do poder municipal em parceria com a sociedade organizada, no caso, a comunidade LGBT. É supimpa. A “Praça de Bolso da Gilda” prevê ampliação da calçada – um alento para ajudar a atravessar um dos cruzamentos menos amigáveis da paróquia –, rampa de acessibilidade, estrutura para ciclistas, minipalco para shows. Melhor: do minúsculo espaço em diante deve surgir uma nova ciclofaixa, rumo à Praça Tiradentes, o que vai amenizar o astral de filme de terror que ronda a Cruz Machado. “Será uma acupuntura urbana”, resume Goura.
Ninguém ainda se deu ao trabalho de biografar Rubens Aparecido Rinque, a Gilda, paranaense de Ibiporã, nascido na simbólica data de 7 de setembro de 1950. Mas seria tolice dizer que lhe tenham virado as costas. É dona de fina iconografia. Na década em que esmolou moedinhas e atenção na soleira do Bar Maringá, foi documentada por bambas do gênero. Seus retratos são joias na produção de Lina Faria, Fernanda de Castro e Karin Van Der Broocke. Ponha-se na lista os fotógrafos Julio Covello, Luis Stinghen e Alberto Melo Viana – esse, com relativa folga, autor da mais impressionante dentre as muitas fotos feitas do pobre Rubens.
A imagem foi captada numa noite de fevereiro de 1978, na Rua Cândido Lopes, diante do mítico bar Bife Sujo. O “Bife” era o endereço oficial de poetas como Paulo Leminski, de artistas como Rogério Dias, do músico Ivo Rodrigues. Gozava da preferência de intelectuais e jornalistas em geral. Diz-se que seus drinques assistiram à fundação do jornal Correio de Notícias, que tinha ali sua mais importante sucursal.
Gilda não saía de lá de mãos abanando – ganhava meia dúzia de cigarros e os fregueses ilustres lhe pagavam a cachaça, sem chiar. “Se não estivesse torrada, dava até para levar um papo”, conta Alberto Melo Viana, confirmando que a mendiga parecia ter boa instrução e algum verniz cultural. Adorava carnaval. E a turma do estabelecimento tinha um bloco de folia, cujo cortejo se limitava a ir até o Calçadão, uma quadra abaixo, e voltar correndo para a mesa, onde estava perto das geladas e a salvo dos Cavalheiros da Boca, com quem as fuças não batiam.
Foi nesse clima de samba, suor e cerveja que Viana a flagrou não fazendo micagens para divertir os bebuns, mas com o peito nu, os cabelos quase raspados, a barba por fazer. No pescoço, um colar de conchinhas do mar. As alças de um vestido puído desciam até a metade dos braços abertos. Em vez de insanidade, placidez. Pronto. Ao fundo desse balé, a cidade em movimento. É o tal do instante mágico de Cartier-Bresson, do qual se sai com uma pulga atrás da orelha. Gilda podia caber em qualquer definição, de boneca a maltrapilha de batom, mas ao mesmo tempo em nenhuma. Essa ambiguidade talvez explique a compaixão que seus contemporâneos lhe dedicaram.
Do muito que se escreveu sobre ela – artigos acadêmicos e três montagens de teatro –, um dos registros mais contundentes e menos conhecidos é uma peça jornalística, “A morte de Gilda, a alegria das ruas”, do veterano Paulo Marins. Saiu publicada na revista Panorama de maio de 1983 e poderia, com folga, figurar na biblioteca de textos fundamentais para entender Curitiba e sua fauna. Com elegância, Marins faz uma espécie de “a morte e a morte de Gilda”, pontilhando o que poderia ser um mero obituário com informações que explicam o reinado da travesti no imaginário local. Do mesmo naipe, apenas a escrava forra Maria Bueno.
Fica-se sabendo na reportagem da placa de bronze colocada em homenagem a Gilda, na XV; dos sambas a ela dedicados por Paulo Vítola e Cláudio Ribeiro; de seus entreveros com o presidente da Boca Maldita e da Banca Polaca, Anfrísio Siqueira; dos dias que descansou anônima na gaveta 66 do IML, até que os familiares – que por certo não se orgulhavam muito de seus trejeitos de Salomé – mandaram os documentos para que fosse sepultada.
Marins descreve com perícia os populares que atiraram vinténs ao caixão doado por Carlos Syzocki, da Funerária São Pedro. Dessa vez, não por medo de ganhar um beijo da boca banguela. Detalha que foi enterrada ao lado de Martinha, em tese a primeira travesti paranaense, assassinada por um estudante de Medicina. Ao fim da leitura, resta se entregar ao primoroso curta-metragem Beijo na Boca Maldita, do cineasta Yanko Del Pino. E lembrar do verso a ela dedicado pelo poeta Antonio Thadeu Wojciechowski: Gilda é “um pecado atrás da porta”. A pracinha de 120 metros quadrados que lhe será erguida numa esquina violenta da capital, com sorte, pode acordar o melhor de nós outra vez. Tomara.
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