O finado Antônio Abujamra costumava fazer a seguinte pergunta a seus entrevistados: “Onde foi que você errou?” Ironia da fina. A questão vinha logo depois de “Abu”, como o chamavam, dar o currículo do convidado – a rigor gente criativa e revolucionária, cujos feitos jamais igualaremos. Se não tivessem errado, não estariam ali. Não por menos o programa se chamava Provocações.
Plagiei-o esses dias, ao conversar com a pichadora poética G.L. Quis saber onde foi que ela errou. Explico por quê. Há algum tempo, fotografo as poesias e pensamentos que G.L deixa nos tapumes, muros abandonados e postes – em especial na Água Verde, onde são abundantes, o que me fazia suspeitar que a autora fosse uma espécie de Diablo Cody do pedaço.
São muitas as provações a quem faz poesia – quanto mais se as escreve no ponto do ônibus
Mais. G.L, fosse quem fosse, invocava Joana Coelho Lenz César, artista que escrevia versos nos espaços urbanos do Rio de Janeiro, só que num vocabulário criptográfico. A moça gozou do anonimato até ser decodificada não por Snowden ou Assange, mas por um matemático. G.L não usa símbolos. Ela se expressa em bom português. A exemplo da carioca, contudo, era uma anônima e fazia da cidade o seu livro. Era.
Por um desses acasos, a identidade de G.L caiu no meu colo. “G.L é a Giovanna Lima”, me avisou a colega de ofício A.A [Amanda Audi]. A revelação levou com o vento a minha pretensão de noticiar o que eu julgava a charada da temporada. Quem dá mais? Quem teria escrito “visitarei todos os países procurando encontrar tua língua”? Está lá – no tapume da Praça do Atlético.
G.L estava perto de fato – circulamos no mesmo Forte Apache. Bastava atravessar a rua. Chegou a ser minha vizinha da frente. Conheço sua família desde piá, daí minha surpresa. Às apresentações: Giovanna soma 27 anos, estudou em bons colégios e goza de conforto e saúde. Tem um visual agressivo – chama atenção a máquina de datilografia tatuada no braço – e um irretocável sotaque curitibano. Em meio a sua sinceridade desconcertante, solta deliciosos “que preguiça” ao tratar do obscurantismo do século 21. Domina a arte da conversa, exercitada nos bares – seu habitat natural. É dada à paixão e à fossa. Tem já um clássico: “Meu rancor será sempre teu, meu amor”.
Formada em Jornalismo, trabalhou com publicidade e hoje estuda Letras na UFPR. Publicou poesias em antologias. Produz também contos e crônicas. Integra três coletivos – “Umbilical”, “Monk” e “Marianas”. As paredes de seu quarto são um grande quadro negro, no qual treina com giz os versos que ganharemos de graça assim que cruzarmos alguma esquina. Descobriu que queria fazer isso num período de trabalho em São Paulo. Encantou-se com a arte de rua. De volta a CWB, passou a povoar o lugar onde nasceu com versos de digestão rápida. A gente acha, decora, repete. São feitos para roubar.
O que G.L. produz ora lembra Leminski – uma de suas referências (“Quanto à poética sou bem resolvida. De hermética basta a vida”), ora se afina com os arranca-rabos de gênero, que mexem com nervos e corações: “Paredes em branco não lutam contra o machismo”. No geral, ao ser flagrada, ganha sorrisos de apoio. É poesia, afinal. Mas tem poréns: ainda que não suba em prédios nem se expresse na propriedade privada, sempre que sai munida de pincéis, sprays s estêncils corre os mesmos riscos reservados aos pichadores
Dia desses, o sufoco: um sujeito parou de carro atrás dela, com cara de pouco amigos, justo quando deixava num muro da Rua Coronel Dulcídio o verso “Hoje sem falta sufoco a saudade numa garrafa qualquer”. “Deus, chegou a minha hora?”, pensou. Saiu só no sapatinho. Depois voltou para terminar o serviço. De outra feita, um anônimo lhe acudiu: “Corra que a polícia vem aí”. Partiu no pinote. Queria mudar a rotina das pessoas. Mudou a sua, inclusive.
Giovanna Lima rascunhou as primeiras poesias aos 15 anos, todas renegadas. Aos 18, folheou numa livraria uma obra do coloquial e obsceno Charles Bukowski. “Foi aí que errou”, diria ao Abujamra, sobre o gatilho poético que a tirou do prumo. Descobriu que um verso podia ser livre, claro como a fala e “derrubar da cadeira”. O resto é prosa: seguiu adiante, sendo transformada física e intelectualmente pelas palavras. O primeiro reconhecimento veio de um professor, o jornalista Emerson Castro – que indicou para um certame a crônica “Epifanias que eu não tive”.
São muitas as provações a quem faz poesia – quanto mais se as escreve no ponto do ônibus ou na porta dos banheiros. Alguns alunos do curso de Letras armaram uma fogueira para os versos de G.L, um espanto. “Clarice Lispector vai se revirar no caixão”, escreveu-lhe um inquisidor. Foi só um aperitivo. Semanas atrás, a baixaria chauvinista que povoou as paredes da universidade, com odes insanas à violência contra a mulher, também atingiu os poemas largados por G.L aqui e ali. Picharam em cima dos versos. Ela mostrou a língua e se defendeu com a bravura de uma Joana D’Arc. É boa de briga.
“Meus silêncios constroem poesias ruidosas”. Assinado G.L.
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