Não fosse a gralha-azul, eu nunca o teria notado. Foi ela a isca que me capturou, e não o homem diante dela, velho e translúcido em seu agasalho de moletom também azul, a cabeleira tingida de preto. Caras iguais a ele há muitos no Passeio Público, essa embaixada do País das Maravilhas em Curitiba. Mas, enquanto os outros caminham ao redor do parque ou se alongam na academia ao ar livre, este espécime malha o coração falando de amor com os bichos.

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Com a gralha-azul, por exemplo. Ele parou diante de sua gaiola e a chamou, assobiando. Ela se aproximou, ansiosa, como se aguardasse instruções vitais, a cabeça negra colada lateralmente à tela, rendendo-se sem restrições à palavra humana. Prático, o homem de azul não perdeu tempo. Debruçando-se sobre a cerca, proferiu algum enunciado mágico, capaz de paralisar os pássaros, e envolveu o pescoço do animal com os dedos da mão direita. Temi um enforcamento, mas não, ele só queria acariciar a gralha, já habituada àquele tratamento tátil, amoroso.

Várias vezes eu o vi por lá, o homem de azul sussurrando com pássaros

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O cafuné foi longo e me fez entrever, no olhar azul do cara, um tipo descontrolado de franciscanismo. Olhei para os lados, prevendo a intervenção de um guarda, um zeloso fiscal de afetos que viesse salvar a ave de suas próprias carências, ensiná-la que o amor dos homens tem a mesma estrutura desmoronadiça das arapucas, é feito para cair sobre nós.

Mas só vi chegar uma menininha. Sem largar o pescoço do bicho, o homem de azul sorriu para ela e a convidou para um jogo: “Vem cá fazer um carinho na gralha, ela é mansa, ela gosta”. A menina hesitou, agradeceu e recusou a oferta. Só queria ver o pássaro de perto, e não tocar nele, tocar era proibido.

O homem de azul nem ligou para a reprimenda. Continuou alisando o bicho, elogiando o brilho azulado de suas penas, até ser interrompido pela aparição do pai da criança. Irritado, o sujeito queria saber por que a pequena havia deixado o parquinho sem a sua autorização.

O homem de azul respondeu por ela. Disse que a perdoasse, a menina tinha se encantado pela gralha, e pediu ao pai que convencesse a filha a acariciar o pássaro. Mas o pai não gostou da ideia, melhor não, aquela ali era alérgica a tudo e, se alguma coisa acontecesse com ela, a ex-mulher o mataria. O homem de azul se mostrou compreensivo, sei bem como são as mulheres, conheço o tipo, também tive minhas famílias, e os dois adultos riram, desejando bom dia e boa sorte um ao outro, enquanto a menina e a gralha, abandonadas, dividiam a mesma expressão de perplexidade e alheamento.

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Depois disso, várias outras vezes eu o vi por lá, o homem de azul sussurrando com pássaros, cobras e peixes, abordando crianças e prostitutas. Semana passada foi a vez dos macacos. Debaixo dos plátanos, à beira d’água, o cara dava as costas ao tráfego de pedestres. Achei que urinasse no tanque das carpas, mas não. Ele estava se exibindo para o bando de macacos-aranhas, isolados em sua ilhota.

Os bichos se enfureceram. Desceram das árvores e ensaiaram uma dança de estupefação e impotência, talvez intuindo que a única coisa a separá-los da humanidade fosse aquela parca e sórdida fluidez: um maldito canalzinho de água suja.