• Carregando...
 | /
| Foto: /

São três meninos. Sempre os vejo na saída de sua escola. Vêm uniformizados pela Comendador, em formação de ataque. À frente, avançam os dois maiores, não parecendo haver distinção entre eles. Ali não há líder, nem prevalência óbvia de um sobre o outro. Com o terceiro, bem menor, a coisa muda. Ele persegue os colegas, obstinado, tentando alcançá-los na corrida. E estão sempre correndo, os três, pois diante deles se abrem todas as ruas do mundo.

Não sei dizer que tipo de amizade se estabeleceu ali. Parecem sócios que se amam. Quando os vejo, penso logo na cândida definição de Manuel Bandeira para os moleques da Trinca do Curvelo, gangue infantil que rondava sua casa, no bairro carioca de Santa Teresa. Eram “os piores malandros da Terra”. Representavam o “microcosmo da política”.

E é mais ou menos assim. Vivem de negócios mínimos, transações vedadas ao entendimento adulto. Trocam objetos miúdos por objetos miúdos. Os dois maiores se exaltam, brigam e finalmente se abraçam, sorrindo, após fecharem seus acordos. Tudo para eles é lucro e aprendizado. O pequeno, porém, não participa desses congraçamentos. É um satélite de ansiedade saltando da órbita de um para a de outro. Indeciso, não sabe qual daquelas indiferenças ele ama mais.

Não é sempre assim quando o amor trafega entre três corações?

Notem que, ao falar “o pequeno”, não quero dizer “o mais novo”. Os três têm a mesma idade, são colegas de classe, vestem os mesmos uniformes, usam mochilas de super-heróis comuns: Homem-Aranha, Batman, Super-Homem. Velhos projetos de masculinidade. Mas, se não são originais no que fantasiam, são no que aprontam.

Em especial, o pequeno. Ele se esforça para agradar. Vê um saco de lixo na rua, à espera da coleta, e corre apanhá-lo. Faz pose de executivo e o carrega por meia quadra, como se fosse uma valise. Entra numa loja de presentes e, ao sair, segundos depois, já está de mãos vazias. O saco de lixo ficou lá dentro, escondido no balaio de brinquedos chineses.

Os outros aplaudem com parcimônia, não dão o braço a torcer. Gostam de diminuir o menorzinho, apaixonados pelo triângulo isósceles que forjaram. E não é sempre assim quando o amor trafega entre três corações? O pequeno encontra um vira-lata na esquina, pega o cachorro no colo, é quase do seu tamanho, dança com ele, aceita suas pulgas em troca do riso dos colegas. Mas isso não o faz crescer.

Só não pensem que é manso, imune a explosões. Dia desses subiram os três num muro da Visconde do Rio Branco. Os maiores o puxaram para cima e, sacanas, pularam de volta à calçada. Abandonado nas alturas, o pequeno uivou, pediu ajuda, implorou, esperem, não me deixem aqui. Mas os traidores nem olharam para trás, sumiram na corrente das seis da tarde.

Aflito, o pequeno surtou. Percebendo o chão tão distante de seus pés, começou a gritar: “Eu vou morrer, alguém me ajude, eu vou morrer”. O povo em volta acudiu, mas às gargalhadas, fascinado pelo medo do menino no muro, o Homem-Aranha às suas costas, impotente, incapaz de vencer dois metros de descida.

E foi aí que o guri, enraivecido, mudou de atitude. Encheu o peito e os olhos de fogo e vociferou sobre nossas cabeças, os punhos minúsculos para o céu: “Qual é a graça?” Disfarçamos, ninguém queria ofendê-lo, mas já era tarde demais, nosso destino estava selado. Impiedoso, aproveitando-se do palanque e da emoção, o pequeno incorporou um profeta inflamável: “Eu vou morrer, sim, mas vocês também vão! Todo mundo vai morrer, já esqueceram? Todo mundo aqui vai morrer!”

Dito isso, valente, saltou em meio ao pasmo geral. Caiu de pé, torceu o tornozelo e chorou, mas foi logo socorrido e consolado por nós, seus companheiros de infortúnio.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]