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Luís Henrique Pellanda

A nudez de um tubarão

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Numa crônica perfeita, Drummond censurou o mar do Rio por haver destruído, durante uma ressaca, a Praia do Arpoador. O mar, por sua vez, cuidou de acalmar o cronista: não era um destruidor, estava “apenas trabalhando para a refeitura”. Drummond aceitou o argumento marítimo, no que fez muito bem, e eu segui o seu exemplo. Neste Natal, não repreendi o mar de Guaratuba. Ao ver o estrago causado por ele à Praia do Cristo, deixei passar. Afinal, o próprio aniversariante, do alto do morro que lhe foi consagrado, viu tudo e nada disse.

No fundo, o mar é quem manda. Além do mais, o reino deste Cristo é outro. É mineral. O mesmo reino das rochas a escorar o pouco que restou do calçamento. São pedras grandes, que o mar não cansa de lamber, em titânica provocação. Parecem mastins adormecidos, de pelame verde, guardando a última de nossas fronteiras metafísicas. Sim, no dia em que o mar subir de vez e ganhar estas ruas, as rochas despertarão aos uivos, eriçando o limo às suas costas.

O que quer o mar com esta cidade? Por que manda contra ela as suas ondas?

Até lá, passeamos à beira-mar. Ao ver as pedras, quis sentar perto delas, admirar os cacos de laje, o espumar dos elementos e do lixo, os efeitos da ressaca, mas como? Boa parte dos bancos sumiu. Me ajeitei sobre as raízes expostas de um coqueiro. A areia tinha fugido dali, e uma fiação confusa, mas delicada, emergira do solo erodido. Examinei aquele emaranhado de vida, me sentindo um arqueólogo de remotos veraneios, e encontrei, entre as raízes, uma garrafa plástica. Impossível de ser extraída, já fazia parte da história daquela árvore. Eras atrás, um hominídeo primitivo a descartou aqui, durante as férias. Dentro dela, é claro, não havia mensagem nenhuma, o que não a impedia de ser, ela mesma, a garrafa vazia, uma mensagem.

Mas o que quer o mar com esta cidade? Por que manda contra ela as suas ondas? Quer lembrá-la de quê? Uma aliança rompida, um tributo não arrecadado? Trata-se, por acaso, de alguma mágoa marinha? Ou será que nos cobra por uma ofensa qualquer, uma desatenção que, em nossa civilizada grosseria, já deseducados do animismo, desaprendemos a ler?

E se for por causa do tubarão-martelo? Lembram dele? O que encalhou aqui, aos pés do Morro do Cristo, faz dois anos. Pobre peixe. O correto, o óbvio, seria que o devolvessem ao oceano. Mas não, até o mais voraz dos predadores está sujeito a algum calvário. Atrelado a um trator, foi arrastado vivo por estas ruas que o mar, hoje, tenta invadir. Siderado, o povo corria atrás daquele corso, registrando o flagelo em seus celulares e o remetendo ao espaço, sob a forma de fotos e vídeos.

Lembram? Do tubarão no assoalho da peixaria? Ah, ele lutava. Debatia-se contra os azulejos brancos. A multidão o cutucava com os chinelos, trepava num balcão à caça de melhores ângulos. E o mais impressionante: havia, naquela cena de humilhação, um componente profundamente pornográfico. Um tubarão, fora do mar, está nu. Mas nunca um tubarão esteve tão nu quanto aquele.

Ainda não lembram? Pois lembrem. E jamais esqueçam a nudez de um tubarão. O mar de Guaratuba pode estar trabalhando nisto. Na limpeza das ruas por onde arrastaram aquele peixe. E na refeitura de nossa memória.

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