Dois meninos brincam sob os ipês da Rua Cambará. É a última tarde de agosto, e a floração das árvores me diz que o pior do inverno já passou. Não sei se acredito, mas tudo bem, nunca fui de polemizar com as plantas. Ouvi-las já me basta. Os piás é que não ligam, só correm e gritam, escutar é para os velhos. Pra que ouvidos quando se têm pernas e bocas?
Gêmeos, os meninos sobem do asfalto à calçada, e vice-versa, sem cuidado algum. São a imprudência espelhada. Sorte esta quadra, entre a rótula e a Nicolau Maeder, ser tão pacata. Ou será somente uma ilusão de paz isso que nos cerca? Este silêncio, esta calma?
Um vento ruim magoa as árvores da rua, faz chorar a fileira de ipês. Acho triste e bonito ver de novo estes cachos amarelos se esfacelando devagar, imitando uma cadência de chuva, chata. Agosto, setembro, é sempre assim. Ou não? Será a constância dessas quedas o que atiça, ou irrita, os meninos? As flores caem aos punhados, e eles tentam capturá-las aos pulos, antes que toquem o solo. Depois as guardam depressa, nas japonas fechadas a zíper. A juventude vive grávida de ouro.
A amizade, vocês sabem, é uma guerreira coberta de sangue
Tento entender as regras do seu jogo, mas nem sei se competem entre si. Sei que catam as flores no ar e as escondem na barriga. Sei que confiam um no outro, pois não há árbitros, e nem sequer se vigiam. Intuo que só se divirtam. Ou talvez não se trate de mera diversão, pois noto um sentido mais nobre em seus movimentos, ou uma intenção mais patética, sei lá, uma ambição de arte. Sim, eles dançam sob os ipês, dão rodopios e pernadas, preocupados com a plástica e a dramaticidade de seus botes. São tigres que voam, dragões bailarinos. Crianças.
Quero observá-los mais e finjo atender ao celular, alô. Simulando uma conversa, me encosto num ipê. Eles não demoram a me detectar atrás da árvore e logo vêm me intimar, amistosos, mas não muito, as vozes entrecortadas pelo exercício puxado do prazer, oi, tio, quer lutar também?
Lutar? Mas achei que fosse uma dança! Eles riem da minha meiguice, é uma luta, tio! E aí rio junto, aceito que seja uma luta, no fundo tudo é uma luta, florir é uma luta, mas recuso o desafio dos guris, sou de natureza envergonhada, minha carne é tímida, meu cérebro é que se assanha fácil, e é por isso que já vai me escalando entre eles, fazendo de mim, mais uma vez, este cronista ao vento, derivando entre as lágrimas de meia dúzia de ipês amarelos.
Os piás desencanam. São tantos os adultos que não sabem ou não querem lutar, covardes ou ineptos, há diferença? E assim retomam a batalha, samurais, mosqueteiros, mercenários. Dividem a mesma trincheira, são amigos, não somente irmãos, e a amizade, vocês sabem, é uma guerreira coberta de sangue.
Uma senhora, a guardadora de carros, surge na esquina e, disposta a pacificar a Rua Cambará, passa nos gêmeos uma descompostura, olhem o trânsito, querem se matar? Eles chiam, mas a vó é braba, melhor se render. Marcham até a segurança da rótula, onde descem o zíper das japonas e deixam jorrar, de cada ventre, o espólio dourado do dia. Contam as flores caídas, uma a uma, e as reúnem todas numa única pilha de belas e murchosas expectativas.