Tem cachorro novo na vizinhança. Escuto o seu choro comprido de madrugada, uns uivos tristes. Vou à biblioteca, nos fundos do apartamento, sondar o miolo da quadra. De qual destas mil janelas apagadas o cachorro nos manda seu recado? Os latidos reverberam por entre os prédios, batem nas nuvens, se misturam aos trovões de junho. Não entendo o que ele diz, ninguém entende, mas, e se entendêssemos? O que faríamos por ele?
Tudo isso para dizer que, uma vez, falei com um cachorro. Ou quase isso. Juro que estava sóbrio. Foi uma conversa curta e informal, mas marcante, já vai fazer uns 15 anos. Na época, eu morava numa quitinete na Visconde de Guarapuava. Solteiro, chegava em casa muito tarde, a pé, e vinha atento pela região do Guadalupe, desviando de sombras e assaltantes. Uma noite, no entanto, paguei o preço da boemia.
Quando vi, um sujeito me seguia de perto, atravessando a André de Barros, com um sorriso na cara. Na verdade era um menino crescido, mas menino e parecia feliz. Ele me olhava nos olhos, sem sinal de culpa, má intenção ou vergonha, só que em silêncio. Acelerei, desconfiado, e ele acelerou também. Mau negócio, paciência, o jeito era esfriar o sangue, correr seria ofensivo, um convite à confusão. Assim, mantive a linha, e ele me acompanhou ao longo da João Negrão, até a esquina do meu prédio. Depois ficou ali, perdido, eu olhando para ele da portaria iluminada, sem decidir se me despedia ou não. Aí passou um carro com o som alto, tubos de neon azul no chassi, e o menino saiu correndo atrás daquilo, feito um doido, magnetizado.
Comentei o caso com o porteiro e ele me tranquilizou: ah, é o menino cachorro. Fiquei perplexo, menino o quê? Apareceu já faz duas, três semanas, está sempre na área, sozinho. É tão carente, coitado, revira a lixeira do condomínio, persegue pneus e baratas, decerto também sonha com um lar, um dono, uma companheira. Não se preocupe com ele, me disse o porteiro. Ah, claro, pode deixar, agradeci o esclarecimento, fingindo naturalidade, e subi. Fui dormir me sentindo, eu também, mais solitário.
Aquilo aconteceu outras vezes. Eu voltava para casa, o menino cachorro atrás, me escoltando, e já era desnecessário tomar tanto cuidado ao cruzar o Terminal do Guadalupe. De vez em quando eu jogava para o menino uma moeda, e ele saía voando, dava a volta na quadra, rolava na grama do canteiro central da Visconde. Uma noite, partiu atrás de um caminhão de lixo, e correu quase até a Ponte Preta. Mas o caminhão parou e ele ficou sem saber o que fazer, meio sem graça. Tinha mais desejos de morder do que dentes. Nisso, era igual a todo mundo.
Sobre a conversa que tivemos, serei breve. Era comum que eu falasse com ele durante nossos passeios, frases retóricas acho que vai chover, como está frio, tempo feio, que saudade das estrelas. Ele, sempre quieto. Até que, certa madrugada, perguntou meu nome. Levei um susto, respondi e perguntei o dele. Ele respondeu e me disse, sereno, que não era um cachorro de verdade. Disse que era um menino encantado, que aquela não era a sua forma original, e que um dia me contaria a história toda. Antes de ir embora, me aconselhou a jamais me deixar levar pelas aparências.
Nunca mais o vi. Mas é impossível não lembrar dele agora, quando chego à janela da minha biblioteca, à noite, e ouço os ganidos do novo cãozinho da vizinhança. Não compreendo sua língua, embora eu saiba, sim, o que ele está querendo nos dizer. É o nome do feiticeiro que o transformou. O encantador de crianças revelado na voz dos cachorros, à espera de quem os traduza.
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