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Luís Henrique Pellanda

Acabou

 | Ilustração: Felipe Lima
(Foto: Ilustração: Felipe Lima)

Desde que vim para este apartamento na Boca Maldita, no começo da década passada, eu a vejo. Sempre deitada numa cama de lençóis claros, nos fundos de um prédio velho, num de seus andares mais baixos. Juro que observá-la ali, imóvel, não representa nenhum esforço de voyeurismo de minha parte. Pelo contrário, eu a espio sem querer, graças a este meu amor perverso pelas vistas e paisagens. Porque, dentre as mil janelas a que tenho acesso aqui, da minha biblioteca, a dela, invariavelmente aberta e acesa, é a que mais se destaca.

Seu quarto é uma pedra luminosa, translúcida, na lividez do concreto. Não tem cortina, ou pelo menos nada que me obstrua a visão. Tudo que há, na verdade, é uma cortininha de contas azuladas, de vidro. Vejo aquela mulher, portanto, através desse filtro de sonho, um clichê decorativo, mais infantil que sensual. Aliás, esclareço: não é de sexo que estou falando, e nem sei se a pessoa que vive naquela cama é mesmo uma mulher. Apenas penso que é, e que diferença faria sabê-la fêmea ou macho?

Impossível ver seu rosto em detalhes; eu não conseguiria nem sequer reconhecê-la na rua, caso ela saísse de casa. Só sei que sua figura, a julgar pelo corte descuidado da cabeleira grisalha, lembra a de uma mulher de meia-idade. Ela veste pijamas, e tem vários à sua disposição, mas de um modelo único e cores neutras, entre o cinza e o gelo. E, apesar de nunca ter visto suas pernas, garanto que é capaz de andar, pois às vezes se ergue, muito magra, e vai sondar o abismo em sua gaveta de roupas íntimas.

Nunca lê, mas apoia a cabeça em três travesseiros, como se temesse os 180 graus da posição horizontal, ou algum tipo perigoso de relaxamento a que poderia, talvez, se render. Também não há indício de tevê ou computador à sua volta, nem espelho nas paredes brancas. Comida é outra coisa que ela parece dispensar. Conserva somente um jarro d’água, um copo e uma cartela de comprimidos na mesa de cabeceira. E nada de celular.

Nos raros momentos em que some de vista, não demora a voltar ao colchão deformado, onde se encaixa com evidente prazer, os cabelos úmidos indicando que ainda sente a boa necessidade diária de cuidar de si, olhar, tocar e lavar a própria pele.

Acredito que, num canto de seu quarto, inalcançável para mim, ela guarde um aparelho de som. Até torço para que ouça alguma música, um programinha de rádio, qualquer ruído que lhe faça companhia. A não ser que sofresse de surdez. Cega, não creio que seja, pois reage à luz e se move sem apreensões através dela, embora jamais olhe para o mundo exterior. Não demonstra interesse pelo cenário de mil janelas a que pertence minha vida, e que poderia, quem sabe, lhe servir de patética distração.

Várias vezes, me perguntei sobre a gravidade de seu mal, mas já deixei de me agoniar. Fisicamente, ela aparenta estar saudável, e não acho que careça de acompanhantes de qualquer natureza. Sobrevive, e é de se admirar a força com que mantém aquela janela escancarada para o sol e os outros, cada conta de sua cortina transformada em estrela, uma cascata de gotas de arco-íris colorindo suas lutas.

Não foram poucas as ocasiões em que quis escrever sobre ela, mas temia ofendê-la. Só o faço agora porque, semana passada, no instante exato da virada de ano, o foguetório queimando o céu da cidade, resolvi verificar em que situação se encontrava minha vizinha solitária.

Dei com uma janela surpreendentemente escura e, dela, sua sombra pendia, meio corpo para fora. Apontando para o alto um rojão aceso, ou uma espada de fogo, o vulto gritava, com a voz alegre de um arcanjo alforriado:

"Acabou!"

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